Pintura pura
Curadoria
Icleia Borsa Cattani
O que constitui alguém como pintor não é o emprego dos materiais e técnicas próprios à pintura, nem o reconhecimento social historicamente datado. A pintura coloca questões próprias, internas a ela mesma: o embate com essas questões, o seu afrontamento no próprio campo pictural, é que faz de alguém um pintor.
Iberê Camargo mergulhou fundo, mais profundamente do que a maioria dos artistas, nas questões da pintura. Isso foi o que marcou sua obra ao longo de intensa trajetória: no aprendizado e na maturidade artística, a entrega, a exigência, os questionamentos, a urgência foram os mesmos, independentemente do seu nível de conhecimento e de experiência e do seu reconhecimento social. O pintor referia-se à sua luta diária na arena, o ateliê, e às armas que usava, os pincéis e as tintas. A criação provocou nele, seguidamente, angústia e insatisfação com o resultado obtido. Pintar era uma missão.
O aluno que riscava a tela retocada por um professor conservador era o mesmo que se submetia aos ensinamentos dos que considerava os verdadeiros mestres, como Guignard e Lhote, e que copiava, no Louvre, as obras maiores do passado. Ele sabia que nenhum ensinamento teórico o faria desvendar os problemas da pintura, como o refazer paciente, humilde, difícil das próprias telas. Retraçar os caminhos, descobrir os materiais empregados e as sutilezas de seu uso, fazer seus os olhos e as mãos dos mestres e tentar reconstruir as obras-primas. Tornar-se pintor, mergulhando na pintura. A eleição dos mestres parece cheia de sentido, com a visão a posteriori de sua própria obra; a luz que emerge como um clarão de dentro das sombras; as massas pictóricas que assumem uma carnalidade própria; as transparências, translúcidas, mas densas, em formas marcadas por linhas; e muitos outros aspectos que, juntos, criaram um modo único de pintar.
Iberê materializou no fazer pictórico, simultaneamente, processos inconscientes e outros, vinculados ao espaço e ao tempo da pintura, à sua dimensão enquanto corpo significante e às questões do mundo real. Seus entrelaçamentos criam em sua obra uma tensão rara na arte brasileira. Os quadros, desenhos e gravuras contém, em si, um momento único, verdadeira fulguração.
Essa mostra faz um recorte específico na múltipla obra de Iberê. Tenta colocar em discussão sua pintura, a partir do primeiro marco de maturidade absoluta, que ocorre com o tema dos carretéis. Iniciado em 1957-58, com ele consolida-se a constituição de problemáticas fundamentais: o embate com o espaço e a tensão entre as forças centrípeta e centrífuga que constituem as formas, a dialética das relações figura-fundo e profundidade-superfície e a ambiguidade do corpo pictórico, marcado pelo acúmulo e pela falta de tinta, pelos acréscimos e raspagens, pela adição generosa e pela incisão que fere a carne da pintura – mas que revela, ao fundo, a cor e a luz escondidas.
Figura II, 1964, corresponde a um momento político crucial na vida brasileira. Iberê reage a esse momento, como pintor, seguindo uma pesquisa formal que já vinha desenvolvendo desde o final dos anos 50: monocromias escuras, de grande densidade e acúmulo de matéria, nas quais fundo e figura tornam-se praticamente indistintos. Essa Figura parece presa numa teia, mas viva e pulsando; seus muitos membros confundem-se com um fundo de noite espessa; apenas uma tênue luz emerge, raspada dessa carne de negror até chegar à cor do fundo da tela.
Desdobramento II, 1972, traz os signos derivados dos carretéis, transformados em formas, às vezes, quase humanas, e em outras, puras manchas de cor. No centro, concentra-se um bloco compacto; nos lados, unidades menores flutuam, como se uma força magnética mantivesse o todo gravitando. Mas essa gravitação dá-se na viscosidade da matéria: o fundo é tão espesso quanto as formas e, em alguns momentos, ambos se fundem. O centro parece dotado de uma força ascensional; as formas não são estáticas, possuem uma vida móvel.
Outras telas da mostra trazem o motivo do carretel. A primeira data, provavelmente, do final dos anos 50, quando essa forma aparece em composições estruturadas. As subsequentes, do início dos anos 80, revelam a invasão do espaço pictórico pelos signos que negam uma relação figura-fundo. Carretéis com figura mostra a figura humana, retornando após um longo período e convivendo com os outros signos num espaço de superfície, como uma forma equivalente às outras.
Tudo te é falso e inútil I (1992) revela uma tensão entre o movimento, sugerido por uma bicicleta feita apenas de linhas negras, e a figura humana estática e frontal, como uma imagem arcaica. Ambas ocupam espaços equivalentes, possuindo a mesma importância no campo de representação, mas pertencendo a tempos pictóricos distintos: a bicicleta e as outras linhas negras aderem ao suporte azul, como se estivessem situadas no tempo da superfície; mas a figura humana, embora atravessada pela mesma cor, por seu singular modelado em branco, projeta-se para frente, abrindo para além do tempo e da própria vida.
A produção de Iberê vai além da simples junção de questões pessoais – afetos, angústias – com questões universais – Eros e Tanatos –, aprofundando as problemáticas do corpo da pintura. Sua obra é pintura pura.
Icleia Borsa Cattani
Imagem: Abertura da exposição “Pintura pura”, que esteve em cartaz na primeira sede da Fundação Iberê Camargo, no bairro Nonoai, no ano de 2004. Foto © Acervo Documental da Fundação Iberê Camargo