Iberê Camargo: moderno no limite 1914-1994

Curadoria

Mônica Zielinsky, Paulo Sergio Duarte e Sônia Salztein

31.maio

31.ago.08

Estão aqui reunidas obras de Iberê Camargo produzidas entre o princípio da década de 1940 e meados dos anos 90. Mais do que apresentar o panorama de uma produção vasta e multifacetada, esta exposição buscou focalizar alguns de seus momentos cruciais, que atestam o vigor e a contundência com que o pintor respondeu às grandes viravoltas culturais do século XX: sua perplexidade em face do desastre ético e moral que significara a Segunda Grande Guerra; seu ceticismo perante um vertiginoso progresso tecnológico, que já não parecia capaz de emancipar forças criadoras; a pergunta, posta sem trégua por sua obra, sobre a excepcionalidade da experiência da arte em uma sociedade cujos rumos se viam cada vez mais marcados por uma hegemônica cultura de massa. O tom ora grave ora exasperado dos trabalhos ecoa, enfim, o sentimento de desenraizamento e incomunicabilidade do artista moderno, ainda mais daquele que, como Iberê, viveu longe dos grandes centros europeus e norte-americanos, pólos nevrálgicos da modernidade que culminava naquele século.

O carretel – esse objeto inanimado que evoca a memória arcaica da industrialização, o mundo dos artefatos e da história – foi, para o artista, o signo de uma vida espoliada, perdida na monumentalidade desumana dos tempos; não obstante, guardaria para ele certa qualidade afetiva, podia ser imaginado como um corpo dotado de movimento, da plasticidade das coisas vivas. Eis aí aspectos modestos, humílimos, mas suficientes para que Iberê tentasse obstinadamente arrancar aquele objeto da sua condição de coisa. De certo modo a figura do carretel está presente na obra inteira do artista, e ao longo dos anos nela reapareceu sob as mais diversas configurações. Na primeira metade dos anos 60, os líricos carretéis de 1957-58 se tornavam uma reminiscência vaga de formas orgânicas, corpos massivos e opacos que a custo vinham à tona, pois pinturas de matéria densa e de tons sombrios, que beiravam a abstração, pareciam na iminência de tragá-los.

Entre 1965 e 1966, Iberê pintou telas gestuais, e dos carretéis não havia restado senão um cinetismo sem repouso e incapaz de reter qualquer forma reconhecível. Na década seguinte, os carretéis ressurgiam como explosões de dados, prismas, ampulhetas, miríades de falos, olhos e ânus; formas que, se sinalizavam o ânimo de um pintor empenhado em solapar a integridade de todos os objetos à sua frente, nem por isso deixavam de expressar a extraordinária força erótica de sua pintura. A partir do início da década de 1980, quando o artista colocava a figura humana no centro de suas preocupações, apenas uma memória remota e estilhaçada do carretel remanescera em sua obra. Todavia, se ali não estava o carretel, sua condição de coisa se havia transferido para outro elemento qualquer: uma bicicleta imobilizada, a escada pairando no vazio ou mesmo os corpos petrificados, coisificados dos personagens. Nesses corpos frágeis, espectrais revela-se, paradoxalmente, a humanidade da qual eram portadores os primeiros carretéis; pode-se bem vê-los como signos de uma memória destituída dos objetos do seu enleio e do passado que sempre pudera reconcilia-la, e que agora retorna ao sujeito de carne e osso que primeiro a imaginou.

Mônica Zielinsky, Paulo Sergio Duarte e Sônia Salztein

 

Imagem: Abertura da exposição “Iberê Camargo: moderno no limite 1914-1994”, que esteve em cartaz na Fundação Iberê Camargo de 31 de maio a 31 de agosto de 2008. Foto © Mathias Cramer

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