José Resende: Na membrana do mundo

Curadoria

Luisa Duarte

13.nov

06.mar.22

Vivemos em uma época marcada pela virtualidade, pela diluição da dimensão corpórea na relação com o mundo, pela presença massiva de imagens. Esse é, ainda, um tempo no qual prevalece o déficit de atenção, um olhar que tudo vê e nada enxerga. A obra de José Resende se coloca na contramão de tais imperativos que marcam o nosso presente. Couro, parafina, feltro, aço, ferro, chumbo, latão, cobre, madeira, pedra, borracha. Os materiais encontrados nos trabalhos hoje reunidos na Fundação Iberê são aqueles que habitam de forma anônima o dia a dia dos espaços urbanos. Aqui, estão sempre em contato um com o outro, instaurando uma cadeia de vizinhanças fecundas: quente/frio, líquido/sólido, rígido/mole, opaco/transparente, liso/áspero. Se na vida diária as nossas retinas são inundadas por imagens que parecem aportar mais certezas do que dúvidas, com cada escultura de Resende ocorre o inverso. Diante delas, uma espécie de desconcerto nos atravessa e somos interrogados por aquela forma que não encontra paralelo no mundo, pois é fruto de um gesto que inaugura um imaginário singular a partir do que se encontrava até então adormecido no prosaico cotidiano. Estamos perante um ato plástico que se opõe “ao automatismo e à dispersão generalizadas” do mundo atual.

Se a sua obra subverte um olhar simultaneamente apressado e anestesiado, a mesma também possui a capacidade de promover um desvio em um tempo caracterizado pela crescente dissolução das dimensões corpóreas e erotizadas da vida. Por vezes, suas esculturas evocam movimento ou deixam rastros de alguma passagem manual. Já alguns dos seus materiais remetem à membranas, peles, superfícies, que recobrem o interior dos corpos. Essa escolha por habitar um espaço “entre”, capaz de revelar e encobrir a um só tempo, alude por sua vez à esfera do erotismo, assim como as inúmeras vezes nas quais dois elementos distintos se tocam, se atritam, se juntam, se avizinham, a fim de formar um todo contínuo.

O conjunto de dezoito trabalhos aqui reunidos (o mais remoto tem como origem o ano de 1974, o mais recente, 2018), somado à presença de “Olhos atentos” (2006) nas margens do Guaíba, revela uma variedade capaz de abarcar os principais eixos do seu programa poético. Ao dar um sentido insuspeitado ao murmúrio incessante das pequenas coisas que habitam os dias, ao instaurar vizinhanças fecundas entre elementos heterogêneos, ao promover uma pausa na pressa característica da vida urbana, a obra de José Resende, sem estardalhaço, finda por recordar que reside no vínculo entre corpo e olhar o lócus da nossa experiência no mundo e, nesse mesmo lance, nos desperta de uma persistente e opaca hibernação dos sentidos.

Luisa Duarte

 

Imagem: José Resende. Sem título, 1985/2021. Foto © Edouard Fraipont

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