O “outro” na pintura de Iberê Camargo
Curadoria
Maria Alice Milliet
15.jun
10.mar.13
Investigar a emergência da alteridade na obra de Iberê Camargo é como penetrar sua obra pelo avesso; é resgatar o verso da imagem estereotipada que o público tem de sua pintura. É esclarecer, portanto, não a problemática pessoal de Iberê, mas ampliar a compreensão da ambiguidade de sua pintura.
É inegável que a angústia existencial afeta sua produção artística, o que faz de sua obra um testemunho das oscilações vividas pelo homem-pintor. Sob a tinta espessa e sombria que recobre a maioria de suas telas, Iberê marca o sentido do irremediável, de um vazio que nada supre, da dor de existir.
É dessa maneira que sua pintura é (re)conhecida pela maior parte do público. Nesse rio de águas turvas, porém, subjaz uma limpidez de ordem construtiva; esta possivelmente experimentada precocemente na solidão da campanha, na quietude dos vastos campos do Sul.
Esse “outro” que habita a pintura de Iberê Camargo aparece nas praças vazias, nas vielas silenciosas de Santa Teresa, nos objetos alinhados sobre a mesa, no raio de sol que ilumina a parede do seu ateliê. Essa tranquilidade aparente permanece até que o equilíbrio, tão intensamente buscado nos anos de formação, submerge numa onda de turbulência e caos pictórico.
Pensar o “outro” na pintura de Iberê Camargo é, portanto, lançar um olhar capaz de perceber que na tinta espessa e sombria de suas telas se encontra o homem-pintor, com suas contradições e angústias.
“Falta-me coragem para ver o outro que vive fora de mim”, confidencia Iberê. O reconhecimento da alteridade, de fato, nem sempre é fácil.
A proposta da exposição consiste, justamente, nesse reconhecimento, na medida em que aponta aquilo que na obra do artista aparece como linguagem diversa da expressividade violenta que caracteriza sua pintura dita abstrata e das figuras extenuadas de sua fase final. Para tanto, aponta afinidades eletivas que, de algum modo, balizam a elaboração dessa linguagem outra presente em sua obra, após estágio de dois anos na Europa.
Afinidade com os pressupostos de Giorgio de Chirico – criador da pintura metafísica – com quem fez o estudo dos grandes mestres da pintura clássica. Afinidade com o espírito arguto e cartesiano de Lhote, que orientava os alunos – entre eles, Iberê – por meio de aulas práticas voltadas para a aplicação das leis da composição e da cor. Afinidade com Morandi que, no Brasil, inspira uma terceira via, diferente do figurativismo de conotação ideológica e do formalismo construtivo, ambos em disputa na época.
Esse compartilhar de princípios não significa que o mais jovem seja tributário dos mais velhos. Por temperamento e opção, o único compromisso que Iberê reconhece é com a própria sensibilidade. Ao reconhecer a tradição e aderir à estética moderna, Iberê Camargo, em qualquer de suas fases, mantém o que há de mais característico em sua obra: a dialética entre o sensorial e o intelectual.
Maria Alice Milliet
Imagem: Vista parcial da exposição “O ‘outro’ na pintura de Iberê Camargo”, que esteve em cartaz na Fundação Iberê Camargo de 15 de junho de 2012 a 10 de março de 2013. Foto © Fabio Del Re_VivaFoto