Subversão da Forma
Curadoria
Bernardo José de Souza
20.out
06.jan.19
Nas sociedades ocidentais, cultura e natureza constituem esferas distintas, as quais designariam, grosso modo e respectivamente, o mundo criado pelo homem e o mundo que nos foi dado, anterior a toda e qualquer forma de construção (racional) humana. Alternativamente, para os povos ameríndios, em algum sentido se poderia dizer que tudo o que há é cultura, não havendo separação absoluta entre homem, animal, vegetal e mesmo objeto (há exceções), uma vez que todos possuiriam uma alma comum, ainda que dotada de perspectivas diversas quanto à sua própria humanidade ou mesmo à alheia.
As teorias do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro sobre o Perspectivismo Ameríndio – formuladas a partir de suas pesquisas em meio às culturas indígenas da Amazônia – propõem um novo filtro a partir do qual relativizamos as relações travadas entre o homem e o mundo, entre a humanidade e as coisas que a cercam, desvelando um processo de subversão de nossa natureza e de nossas indagações metafísicas, o qual transforma, em alguma medida, o outro num igual, não obstante suas diferenças.
Para além das simplificações açodadas desta introdução, Subversão da Forma busca relacionar um conjunto de obras, mas sobretudo de artistas – Daniel Steegmann Mangrané, Erika Verzutti, Iberê Camargo e Luiz Roque –, que exploram um repertório comum, embora façam uso de vocabulários distintos e assaz particulares, imbuídos da curiosidade especulativa que lhes (nos) faz rever o mundo sob novas perspectivas, quer plásticas, políticas, afetivas ou mesmo místicas. Esta mostra nasce justamente do desejo de repensar as formas reconhecíveis que nos rodeiam, de instar o público a encontrar estranhamento naquilo que lhe (nos) é familiar, bem como identificar semelhança naquilo que parece estranho.
As obras presentes na exposição são dotadas de uma presença escultórica e, mesmo aquelas que à primeira vista possam parecer bidimensionais, são elas também investidas de uma carga senão coreográfica, altamente performática. Figuras metamorfoseadas em seres quasi mitológicos, sobre-humanos/inumanos, objetos que transcendem sua função para alcançar um plano místico, reveladores tanto da geometria quanto da natureza amorfa do universo em seu primeiro estágio.
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Os corpos que passeiam pelo espaço expositivo são todos os mesmos corpos, ainda que na aparência distintos; já as obras são como o reflexo de uma certa uniformidade entre a matéria humana e a não humana, que se nos apresenta disforme, como se o humano houvesse sofrido alguma espécie de metamorfose. Nesta exposição, corpos e suas substâncias desafiam nossa capacidade de significação dos elementos que nos circundam, como se fôssemos acometidos de uma miopia/distopia/epifania capaz de subverter as regras do jogo, nos reposicionando no centro de um vórtice ficcional que passa a responder pela dita realidade.
Os corpos que nos são dados a ver, imantados por uma zona de alta voltagem sexual, equiparam, a um só tempo, pulsões de vida, destruição e morte, fazendo atravessar nossos sentidos uma vaga de fantasias, ora febris, ora oníricas, ora paranoides, sempre idiossincráticas. Há no ar uma atmosfera predatória, canibal: um corpo devora o outro e os restos dão forma a uma nova natureza, quiçá perversa.
É como se as chamas tórridas do Museu onde arde um Brancusi (o incêndio no MAM Rio, em 1978, no filme de Luiz Roque) houvessem se alastrado para o espaço expositivo da Fundação Iberê Camargo, desconfigurando as obras, transmutando o passado em futuro, o belo no feio, o bicho no homem, o terrível no sublime, o natural no artificial. Quimeras ganham forma num apocalipse curatorial projetado in vitro, num laboratório onde forma e matéria evocam uma alquimia quântica, um universo paralelo.
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A suposta inesgotável plasticidade da natureza (e de seus recursos naturais, da própria vida, no limite) acaba por encontrar um fim. Ao ato de ganhar ou de dar forma – esta atividade própria do homem, do artista, do escultor -, sucede a aniquilação total de tudo o que conhecíamos previamente.
A filósofa Catherine Malabou nomeia plasticidade destrutiva ou plasticidade do acidente o fenômeno que rompe com todo e qualquer traço do que havia antes – uma impossibilidade de preservar a essência do ente destruído, em que pese sua permanência física/formal. A ruptura, neste caso, é de tal ordem que não há mais ponto de retorno, solução de continuidade.
Uma explosão – ou espécie de morte – e o “vácuo” dela consequente, consistem no grande e maior risco para nossa aventura sobre o planeta. A natureza rompida, a humanidade destituída, a memória esfacelada, a Terra arrasada.
Esta exposição é sobre o fim. E sobre o começo de um novo tempo, irreconhecível, inominável, inefável.
Bernardo José de Souza
Imagem: Still da obra Modern (2014), de Luiz Roque.