Maria Coussirat Camargo – uma cronologia
“Sombra e luz de Iberê”, como definiu o crítico de arte Paulo Herkenhoff, Maria Coussirat nasceu em 28 de novembro de 1915, em Porto Alegre, RS.
Foi em 1939 que Iberê Camargo a conheceu. Reconhecendo o talento do marido, Maria começou cedo a guardar sua produção e o acompanhou nas mudanças e viagens que a carreira de pintor exigiria.
Era a sombra, mas também protagonista. “Esteio seguro e sereno, Maria assumiu a organização da vida prática do marido. Ela era a responsável pela manutenção das necessidades cotidianas do casal, bem como pelos contratos, envio de cartas, administração de finanças, importação de tintas, despacho de obras e, claro, guarda da produção artística. Tarefas estruturantes, sem as quais pouco se avança; todavia, tarefas submersas, longe dos olhos e, por conseguinte, passíveis de esquecimento e menção”, destaca Paula Ramos.
Maria viveu ao lado de Iberê até o seu falecimento, em 1994. Um ano depois, com amigos e empresários, ajudou a criar a Fundação Iberê, instituição que atua na preservação da memória do artista.
Integrando a mostra “Iberê Camargo – O Fio de Ariadne“, a cronologia ilustrada de Dona Maria, como era conhecida, revela seu suporte fundamental ao trabalho de Iberê.
MARIA CRUZ COUSSIRAT CAMARGO
(Porto Alegre, RS, 1915 – 2014)
Maria Cruz Coussirat nasceu no dia 28 de novembro de 1915, em Porto Alegre, RS.
Filha de Ladislau Coussirat Júnior, conhecido como “Lalau”, e de Felicidade Cruz Coussirat, a “Dona Nena”, teve uma única irmã, Eunice Cruz Coussirat, também sua grande amiga.
Ao contrário de Iberê, cuja mocidade no interior do Estado havia sido culturalmente limitada, Maria tivera acesso, desde cedo, a um cenário diferenciado.
A minha mãe gostava muito de pintar. A família da minha mãe, aliás, era totalmente da arte, da música… Todas as mulheres tocavam piano, cantavam. Eram pessoas intelectualizadas, digamos assim.
Lalau e Nena não dispunham de grandes posses, mas investiram na educação das filhas. A formação de Maria foi no Sévigné, instituição católica que atendia à maioria das moças da “boa sociedade” gaúcha. Ali, ela realizou o Curso Complementar, recebendo do Ginásio Estadual Sévigné, em 1935, o diploma que lhe permitia atuar como professora de educação infantil.
Maria estudou Pintura no Instituto de Belas Artes (IBA) da Universidade de Porto Alegre – atual Instituto de Artes da UFRGS –, de 1937 a 1940 e trabalhou, por um curto período, como professora na rede pública.
Iberê, vivendo em Porto Alegre desde 1936, era funcionário da Secretaria de Obras Públicas. À noite, frequentava o Curso Técnico de Arquitetura, oferecido pelo mesmo IBA desde março de 1939. Foi nessa época que se conheceram.
Casaram-se em 8 de novembro de 1939.
Com tela e tintas de Maria, Iberê pintou seu primeiro quadro, junto ao curso d’água que atravessava a Cidade Baixa de Porto Alegre, hoje canalizado como Arroio Dilúvio. O próprio artista o revela, no texto O riacho, escrito em 1993:
[…] Casas corroídas pelo tempo espelhavam-se em suas águas turvas, que, como os espelhos, refletem, mas, como esses, não guardam imagens. Lembro-me dos salgueiros-chorões que tocavam com seus longos ramos esse espelho baço. Canoas coloridas ancoradas às margens; outras vezes, movimentando-se preguiçosas à força de remos indolentes.
Essa visão instigou jovens estudantes de belas-artes, entre eles, Maria, minha mulher. Foi ali, à margem desse riacho, que pintei meu primeiro quadro e onde começou nosso namoro. Com espessa pasta – a tela e as tintas eram dela – fixei a luz fugitiva dessa manhã de sol sobre aquelas águas lodosas. Árvores desgalhadas, surradas pelo vento, apontam para um céu de cobalto. Plasmei essa imagem: assim começa o pintor.
Maria passou a administrar o ateliê de Iberê e a vida doméstica. Organizava toda a sua produção e arquivava cartas e anotações, auxiliando na futura construção da memória do artista. Nesse processo, seguiu à risca os conselhos de sua mãe:
Quando o Iberê começou realmente a se dedicar à pintura, a mamãe me disse: “Maria, tudo o que o Iberê fizer, tudo, nem que seja um papelzinho assim, pequeno… tu guardas”. Foi o que eu fiz.
Após o casamento, vivendo com os sogros e dispondo da compreensão e do envolvimento deles, Iberê transformou a sala de estar da família em espaço de trabalho, tendo a esposa como modelo.
Diante da produção que aumentava, os pais de Maria cederam os fundos da casa, na Rua Lima e Silva, para a construção do primeiro ateliê do artista, erigido com ajuda de Vasco Prado (1914–1998), também colega na Secretaria de Obras Públicas. Foi naquele galpão de madeira que os dois passavam os finais de semana desenhando, pintando e modelando a partir da observação de pessoas que contratavam nas fieiras da “Sopa do Pobre”.
Quando o casal se mudou para o Rio de Janeiro, em 1942, Maria tentou transferência de seu cargo como professora, mas sem sucesso. Suas aptidões em desenho a credenciaram a trabalhar na área de arquitetura e construção civil, fazendo desenhos técnicos e de perspectiva. Passou pela Oliveira Lima e pela Companhia Construtora Pederneiras. Às telas e às tintas, não voltaria mais.
Como seria para duas pessoas se manterem? Não dava. Isso é uma coisa que envolve muito esforço; é preciso se dedicar só àquilo. E, além de tudo, a gente sente a inconsistência do próprio trabalho. Eu ainda tenho uns trabalhos por aí… Mas, depois da escola, eu nunca mais fiz nada-nada-nada, porque comecei a trabalhar com arquitetura.
Durante muitos anos, Maria e Iberê viveram em rígida austeridade financeira. Moravam em pensões, alimentavam-se de modo frugal e se mantinham, substancialmente, graças ao salário dela. A bolsa de estudos recebida por Iberê do Governo do Estado do Rio Grande do Sul custeava, quando muito, a compra de materiais para a pintura.
Ao chegarmos ao Rio, em uma ocasião, o Iberê estava tão, mas tão abalado… Foi uma coisa horrível. E eu dizia pra ele: “Nada disso, tu tens que ir pra frente”. […] Ele jamais iria desistir, mas ele poderia ter tido um caminho muito mais difícil, se não tivesse uma pessoa que o auxiliasse.
Maria foi assumindo, cada vez mais, a organização da vida prática do marido. Ela era a responsável pelos contratos, envio de cartas, administração de finanças, importação de tintas, despacho de obras e, claro, guarda da produção artística. Tarefas estruturantes, sem as quais pouco se avança.
Quando Maria conheceu Iberê, ele já tinha uma filha, Gerci, fruto de um relacionamento da juventude. Diante da conjuntura pessoal, mas, sobretudo, profissional e econômica, o casal optou por não ter filhos.
A gente não tinha condições. Financeiramente, não se podia ter. […] ‘Quem casa, quer casa’, não é assim? Nós moramos muito tempo em pensão. Em 1947, quando o meu pai morreu, eu recebi um dinheiro com o qual compramos um apartamento no Rio. Era um apartamento simples, de quarto e sala. Mais tarde, nós nos mudamos. […] Olha: necessidades, nós nunca passamos, mas era tudo muito regrado. Aí, nessa situação, ter filho como? […] Eu sou muito realista. Sou pé no chão.
Em 1982, quando eles retornam ao Rio Grande do Sul, é Maria, mais uma vez, quem articula tudo, instalando o casal, primeiramente, na Rua Lopo Gonçalves, com o auxílio de Dona Nena e de Eunice. Logo, ela passa a procurar um terreno para a construção do conjunto de casa e ateliê, inaugurado em 1988, no Bairro Nonoai.
O espaço passou a ser frequentado por amigos, artistas, fotógrafos, intelectuais, colecionadores, galeristas e estudantes. Reconhecidos no Rio de Janeiro como excelentes anfitriões, sempre com as portas abertas, Iberê e Maria alimentaram essa reputação também no Sul.
Maria continuava mantendo tudo organizado e sem esbanjamentos. Em sua pequena estatura, invariavelmente discreta, elegante e determinada, era uma fortaleza, que só minguou com o agravamento e a morte do companheiro de uma vida.
No período final, quando o Iberê foi hospitalizado, levado para a emergência, colocaram ele numa caminha […], e ele era um homem grande e então ficou ali, sem jeito, no meio daquele monte de gente, me procurando com o olhar, querendo que eu ficasse com ele. […] Quando finalmente conseguimos ir para o quarto, ele me olhou e disse: “Tu me perdoas? Diz que tu me perdoas”. E eu disse: “Eu não tenho nada que te perdoar, Iberê. Tu sempre foste uma pessoa maravilhosa”.
Solidão, a pintura-testamento de Iberê – que parecia querer expressar o desejo angustiado de seguir pintando e, com isso, vencer a finitude –, foi executada numa madrugada, em meio a intensas dores físicas. Iberê não tinha como dar continuidade ao quadro; foi Maria quem o fez.
Com Maria, com a tela, a paleta, as tintas e os pincéis que eram dela, Iberê realizou sua primeira pintura. Com Maria, com a força, a vigília, a resiliência e o amor que eram dela, Iberê deu por concluída sua última pintura.
Muitas vezes, o Iberê acabava de pintar um quadro e já me dizia: “É teu”. Porque ele sabia que, sendo meu, eu não venderia. […] Mesma coisa quando ele faleceu. Eu logo recolhi tudo que tinha em galerias: desenho, gravura, guache, pintura… Fiz tudo voltar pra casa.
Em 1995, ano seguinte após à morte do artista, Dona Maria, como era chamada por todos, doou toda a sua coleção, composta por mais de 4 mil obras e 20 mil documentos, para a constituição do acervo da Fundação Iberê. É por causa de Maria, em grande medida, que a instituição existe.
“Sombra e luz de Iberê”, nas palavras de Paulo Herkenhoff, Maria faleceu no dia 25 de fevereiro de 2014, aos 98 anos. No seu velório, realizado no átrio da fundação pela qual ela tanto lutou, lá estava ela: Solidão, síntese e essência.
A profundidade da relação entre o casal pode ser aferida nos textos que dedicaram um ao outro.
Iberê dedica a Maria o poema “Depois”, escrito em 1940:
Quando eu estiver deitado na planície, indiferente às cores e às formas, tu deves te lembrar de mim. Aí, onde a planície ondula, a terra é mais fértil. Abre com a concha da tua mão uma pequenina cova e esconde nela a semente de uma árvore. Eu quero nascer nesta árvore, quero subir com os seus galhos até o beijo da luz. Depois, nos dias abrasados, tu virás procurar a sua sombra, que será fresca para ti. Então no murmúrio das folhas eu te direi o que meu pobre coração de homem não soube dizer.
Maria escreve a Iberê, em 1985:
Sigo-te passo a passo, quase como a tua sombra. Há mais de quarenta anos, dividimos alegrias e tristezas. Entre nós, tudo foi e é repartido. Teu mundo tornou-se o meu mundo. Teus amigos são meus amigos. Tuas preocupações também são as minhas preocupações. Iberê, temos um só coração, um só modo de sentir o mundo. Nunca te vi esmorecer. Sempre trabalhaste com a paixão dos escolhidos. Não te poupaste para alcançar o absoluto na Arte.
Sinto-me feliz em ser a tua companheira e compartilhar a tua caminhada.
Cronologia baseada no texto “Maria Coussirat Camargo e a vigília da memória”, escrito por Paula Ramos para o catálogo da exposição Iberê Camargo – O Fio de Ariadne em março de 2020. Todos os depoimentos de Maria Camargo reproduzidos são oriundos de entrevista concedida à autora, a 12 de agosto de 1999.
Todos os documentos integram o Acervo da Fundação Iberê.
As obras produzidas por Maria Coussirat Camargo encontram-se preservadas na Fundação Iberê e disponíveis no link.
Todos os esforços foram feitos para reconhecer os direitos morais, autorais e de imagem. A Fundação Iberê agradece qualquer informação relativa à autoria, titularidade e/ou outros dados que estejam incompletos nesta edição, e se compromete a incluí-los nas futuras atualizações.
Live do dia 09/05/2020 com Paula Ramos: “Maria Coussirat e a vigília da memória”
Abertura da exposição, dia 19/09/2020