Afonso Tostes – Ajuntamentos
26.ago
22.out.23
A arte no desequilíbrio para destacar a fragilidade da vida
“A realização da escultura, na maneira de trabalho, passa pela tentativa de associar coisas naturais e misteriosas à previsibilidade humana. Busco naquilo que está morto alguma vida escondida. Assim a madeira, antes árvore, deixa de ser apenas material, e pelo esforço físico se torna escultura e campo de reflexão. Não obstante, tento encontrar beleza na poética mais simples possível”.
“Ao longo dos últimos anos, testemunhamos uma profunda revisão histórica feita de um ponto de vista anticolonial que busca compreender as violências epistemológicas constitutivas da história da arte. De um modo muito singular, sem mimetizar maneirismos formais ou discursivos, a exposição Ajuntamentos, de Afonso Tostes, ecoa esse movimento de mudança que marca o presente. E por que de um modo singular? Porque, na obra de Tostes, o que se dá não é uma recusa do repertório do cânone ocidental, mas, antes, o encontro entre dois rios. Por um lado, aquele cujas águas formam o conjunto de obras reconhecidas por uma historiografia oficial, por outro, aquele irrigado pelos saberes dos povos tradicionais”, diz Luisa Duarte, crítica de arte e curadora independente sobre o trabalho do genial Afonso Tostes.
Apesar de ter nascido em 1965 na capital mineira, desde muito cedo Afonso viajava com os pais para fazendas do interior. Contemplador das porteiras e árvores, currais e cavalos, desenvolveu ali o interesse pela investigação da natureza e a sua relação com o homem.
O dom para o desenho foi aprimorado na Escola Guignard, principal instituição formadora de artistas em Minas, onde teve o primeiro contato com as tintas. A partir de 1987, quando mudou-se definitivamente para o Rio de Janeiro e prosseguiu os estudos na Escola de Artes Visuais do Parque Lage com Carlos Zílio, Charles Watson e Daniel Senise, vieram as amizades com outros artistas, críticos, curadores e o primeiro trabalho como assistente de Antonio Dias.
Afonso Tostes interessa-se pelo alcance de métodos simples a partir de materiais descartados, desenvolvendo esculturas aparentemente despojadas de complexidade estrutural e que carregam no corpo os sulcos e as marcas dos usos anteriores. Sua prática também propõe experiências sensíveis postas no mundo a partir do olhar crítico, mesmo que não se esteja atuando politicamente, nem discutindo na arte a vida como ela é ou poderia ser. “Trabalho sobre o que já existe, o que encontro por aí, materiais que sofreram a interferência da mão humana e do tempo. Me interessa a relação do homem com seu entorno, com a natureza. Não falo apenas da relação com o meio ambiente, mas também das relações pessoais, das nossas expressões visíveis e invisíveis”, destaca o artista.
Em Ajuntamentos há uma produção irrequieta. Esculturas, pinturas e desenhos que nunca se acomodam no lugar comum. O artista resgata as histórias preliminares dos materiais, principalmente a madeira, expõe e transforma suas narrativas de acordo com uma sensível reconstrução no espaço expositivo, ou mesmo com a ressignificação de objetos, como ferramentas e utensílios de trabalho.
Para a primeira exposição na Fundação Iberê, Afonso reproduziu no Ateliê de Gravura seu olhar sobre a árvore que, até o ano passado, ajudava a compor a paisagem de cartão postal em frente à instituição: uma Ingazeiro, de copa ampla, em formato de guarda-chuva, que, nos meses de floração e de dias quentes, fazia sombra aos ciclistas.
“Viajar, estar em trânsito, se deslocar, é uma oportunidade de se colocar disponível para o imponderável e ser afetado pelo meio. Acredito que é se desligar um pouco de você. Assim cheguei a Porto Alegre para pensar e desenvolver uma exposição. Nessa viagem de reconhecimento, me deparei com uma imagem instigante. Eram os restos de uma árvore outrora frondosa, que ficava em frente ao prédio da fundação. Ali, como um cadáver, de pé, a irredutível presença de um tronco sem membros me afetou de imediato, pois, além de tudo, ia de encontro aos trabalhos que venho desenvolvendo. No meu retorno à Capital gaúcha, para uma semana de trabalho no Ateliê de Gravura, me aprofundei nesses desenhos. Durante o processo, outros caminhos foram surgindo, e o que seria o desenvolvimento de apenas uma, deu lugar a quatro gravuras. Todas totalmente impulsionadas pela presença daquele tronco, impávido, que apesar de ‘morto’, resiste.
É este espírito livre de um dos principais escultores brasileiros, que tem a cultura de um país e seu povo como inspiração, que Daniel Rangel, curador geral do Museu de Arte Moderna da Bahia, descreve no livro “Entre a cidade e a natureza”: “Capoeirista, homem do mar, do orixá e do fazer manual, Afonso Tostes utiliza em seu trabalho as mesmas ferramentas que os artesãos, carrega o popular em si mesmo, em suas experiências e nos caminhos que decidiu trilhar. (…) Interessa-se mais pela troca com o grupo e pela riqueza cultural que pelos lugares em si. Apesar de executar suas esculturas por meio da observação, em caminhada pela cidade e na natureza, seu assunto principal é o ser humano. Suas obras revelam pessoas, muitas vezes, invisíveis na sociedade (…) Seus olhos pensam e emite mensagens, e, muitas vezes, precisamos estar livres para entender essa comunicação aberta exuniana. Rompe as estruturas com suas mãos, que curam com sua arte. Prazer, alegria, sensibilidade, emoção, um se dar constante com as diversas linguagens que ele expressa com sua mente plural”.
Minidocumentário sobre a exposição:
Conversa com os artistas Afonso Tostes e Miguel Rio Branco, realizada no dia 26/08/2023:
Imagem: Afonso Tostes. Sem título, 2023 (detalhe). Foto © Edouard Fraipont