Vivemos na melhor cidade da América do Sul
Curadoria
Bernardo José de Souza e Victor Gorgulho
30.set
04.fev.18
Possivelmente o mais explosivo dentre os movimentos culturais brasileiros, o Tropicalismo chega a este ano completando cinco décadas desde seus primeiros sinais de vida em 1967. O emblemático aniversário deste movimento, entretanto, impõe a urgência de uma revisão crítica que supera qualquer outro impulso fugaz por meras celebrações. Meio século após o seu lançamento, o álbum Tropicália ou Panis et Circencis – idealizado a partir da fusão dos baianos (na figura de Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil et al) e do grupo paulista Os Mutantes – permanece como um conjunto de poderosas questões para compreendermos melhor o Brasil de hoje e de então. Entre alegorias ricas em imagens discrepantes, acordes dissonantes e radicalidade experimental, a obra demanda que novos olhares sejam lançados sobre si, na tentativa de ler o país à luz do conturbado tempo presente.
Implacável e idealizado, o olhar nostálgico talvez corra o risco de passar o rolo compressor na história e acachapar e limitar as possibilidades de revisão de um movimento ou mesmo de uma obra artística.
A presente exposição elege como ponto de partida o enigma proposto por Caetano em Baby, a sétima faixa do álbum. É a doçura da voz de Gal, a figura feminina ímpar da Tropicália, que avisa ao seu interlocutor: “não sei, comigo vai tudo azul / contigo vai tudo em paz / vivemos na melhor cidade da América do Sul”. Visto de perto, o verso arquiteta um dilema nunca resolvido pelo próprio autor, uma vez que a cidade jamais é propriamente definida, explicitada nos versos. Diante disso, uma breve investigação dos fatos históricos – Caetano vivia em São Paulo quando escreveu a canção – nos leva a crer que, de fato, a utópica cidade mencionada no verso, à época, seria São Paulo, devido ao seu ar cosmopolita e seu porte de gigantesca metrópole. Já um exercício de especulação informal, e uma espécie de senso comum disseminado ao longo das décadas, nos leva a concordar que o Rio de Janeiro seja a tal cidade proposta pelo baiano. Não é preciso recorrer a fontes científicas para amparar tal argumento – fato é que o carioca não hesita em cantar e aplaudir Baby como quem carrega a plena convicção de que a música fala de sua cidade, enquanto o resto de todo o Brasil se refere ao Rio como a eterna cidade maravilhosa.
Os trabalhos presentes em Vivemos na melhor cidade da América do Sul elegem o Rio de Janeiro como a utópica terra citada por Veloso e tecem, entre si, uma rede especulativa sobre a controversa hipótese. Escavar os meandros dos sucessivos e ambiciosos projetos de cidade que tentaram alçar o Rio à condição de metrópole dos trópicos revela-se um exercício tão curioso quanto arriscado. Território espremido entre as montanhas e o mar, o balneário maravilha sempre sofreu com o voraz desejo de destruição do homem moderno – do famigerado “bota-abaixo” do prefeito Pereira Passos no início do século XX, passando pela tentativa frustrada de integrar o tecido urbano no delírio arquitetônico de Le Corbusier nos anos de 1920, até concretizar-se na aspiração modernista de domar o oceano empreendida por Carlos Lacerda com o Aterro do Flamengo na década de 1960. E é justamente com esse homem moderno que a voz de Baby busca interlocução. A problemática modernidade tropical e suas turvas utopias sociais estão no centro daquilo que Baby “precisa saber”.
Diante dos cofres públicos esvaziados, na bancarrota absoluta, o Rio de Janeiro de 2017 é uma cidade (e um estado) onde não há mais como ignorar a debacle da ideia e do projeto de uma suposta democracia racial, de uma terra de prazeres abençoada pela utopia. Enfim, Rio de Janeiro, para sempre uma cidade-projeto, e como todo o projeto, sempre à beira do colapso.
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…e o sol também se levanta a cada novo dia no Rio de Janeiro. Diante da inútil paisagem, corpos encontram-se na areia e no asfalto: um embate entre a chuva, o sangue, o sol, o sal, o suor e a cerveja.
A constante reatualização do mito carioca presta seus favores à uma História mal contada, uma suposta democracia racial que ostenta violência e desconhece seu passado colonial – casas grandes e senzalas perpetuadas nos banheiros de empregada que ainda hoje encontram espaço em diminutos conjugados na zona sul da “cidade maravilhosa”.
E a temperatura sempre sobe quando a música aumenta, quando o pau levanta e o sol se põe à pino nos trópicos brasileiros. Nesta toada, a antiga Capital conserva os timbres da alta e da baixa cultura, uma profusão de odores humanos, maresia e gás natural. Explosões constantes aceleram a economia simbólica de uma cidade em convulsão, onde sexo é dinheiro, favor é corrupção, prazer é morte, samba é redenção e o excesso tempera o dia-a-dia que se arrasta de costas para o relógio. Noções de avanço e progresso são diluídas ao longo do caminho, perdem-se em meio a seus próprios destroços, tanto morais quanto tecnológicos. Assim, a História deixa de ser escrita como continuação do passado, rumo ao futuro – à beira do apocalipse?
Os sucessivos projetos modernos naufragaram no fisiologismo, na anomia política e na ideologia rota do populismo. Nos resta a iconoclastia, e a voz do povo: afinal, como manda nossa Constituição: Todo o poder emana do povo! Brasília, “um tropeço histórico!”, como bem posto pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha.
Bernardo José de Souza e Victor Gorgulho
Imagem: Abertura da exposição “Vivemos na melhor cidade da América do Sul”, que esteve em cartaz na Fundação Iberê Camargo de 30 de setembro de 2017 a 04 de fevereiro de 2018. Foto © Nilton Santolin