Carretéis com figura, 1984
óleo sobre tela
55,3 x 109,7 cm
Acervo Fundação Iberê
Tombo P070
Foto © Fundação Iberê
“[…] Nos anos seguintes [1980 em diante], Iberê testa também outras soluções: às vezes, o rosto não está ao lado, mas entre as outras figuras, ou tanto na lateral quanto no meio. Quando está no meio, geralmente é frontal e olha para fora do quadro. A separação, nesse caso, já não é entre duas áreas da tela, uma espreitando a outra: tudo o que está na tela se oferece ao olhar de quem está de fora. O rosto é mais explicitamente uma coisa entre as outras.
Essa sensação é ainda mais acentuada quando o rosto é enquadrado num retângulo, como se não se tratasse de uma pessoa, mas de um retrato. Em um caso (Carretéis com figura, 1984), é uma máscara branca de perfil com órbitas pretas profundas, no centro da composição. Às vezes, no lugar do rosto ou da meia figura, ou junto com eles, há uma mão aberta, ou duas, meros sinais de presença humana, como aqueles que se encontram nas pinturas pré-históricas. Mas quando essas mãos se aproximam do rosto ou do tronco, forçadamente se relacionam com ele, esboçando um gesto: como se a figura levantasse a mão para responder a um apelo, ou a estendesse para mostrar algo, ou a colocasse diante do rosto para se defender.
Em suma, a presença de fragmentos de figura humana altera fundamentalmente a relação matéria/gesto que caracterizara a pintura de Iberê das décadas anteriores. Antigamente, ela se dava inteiramente no ato de pintar. Agora, encontra seu duplo na relação, dentro do quadro, entre personagens e objetos. […]”
MAMMÍ, Lorenzo. Iberê Camargo: as horas [o tempo como motivo]. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2014. p. 15-16.
“Avesso a convenções, ressentido por toda ordem de limitações impostas e arbitrárias, Iberê tensiona os limites do suporte e parece reencenar na tela, no embate decisivo com a espessura e resistência dos materiais, a experiência vivida. O drama existencial é assim recapitulado numa performance gestual. Mais que modelar, revolve, macera, tensionando ao limite a profusa matéria pictórica para extrair-lhe um sentido, como coagulação da forma. A verdade da pintura é, portanto, coextensiva a essas condensações semânticas numa gramática de signos recorrentes (mesas, carretéis, cubos, dados, signos, bicicletas, esboços de figura humana, faces e dorsos, paisagens, etc.). ‘Pintando-se’, diz Iberê, ‘imobiliza-se a imagem, fixa-se, objetiva- se a percepção’; é por meio do trabalho pictórico (ação concreta no mundo) que a forma emerge dos estados empíricos e do fluxo da consciência para se alçar ao mundo. Como um vetor inegável na constituição dessa poética expressionista, mas essencialmente matérica e concreta, a granulação e a fenomenalidade da experiência transposta à pintura se sedimenta em camadas de matéria e de sentido.”
AITA, Virginia H. A. Iberê Camargo: uma experiência da pintura. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2009. p. 17.
“Nestas telas de 84 o que mais atrai o olho do espectador é o conflito entre a superfície da tela inteiramente burilada – constituindo assim o seu primeiro tempo – e a casualidade espontânea, por vezes caricatural, dos objetos e dos rostos gravados sobre esta pele experimentada (cansada de um saber pictórico) e vem caracterizar um segundo tempo, sobreposto ao primeiro. […]
No passado, o não-fechamento da composição conferia uma finitude ao trabalho pelo acúmulo das pinceladas gastas para a sua estruturação. Mas, de certa forma, o acúmulo de pinceladas limitava o risco. Nestas telas recentes o risco tiraniza a composição, é o negativo ou o oposto absoluto da pintura-pintura; é o desenho que de um modo ‘irritadiço’ vai dar forma ao quadro. O risco opera de modo a enfatizar, com seu voluntário primarismo, o primitivismo espontâneo do desenho de frente versus a aura civilizada do fundo. Dois tempos culturais diversos são, pois representados, como nos quadros dos jovens cultores transvanguardistas.”
GUINLE, Jorge. Os dois tempos e Iberê Camargo. Módulo, Rio de Janeiro, n. 82, set. 1984.