Desdobramento, 1978
óleo sobre tela
100 x 141 cm
Acervo Fundação Iberê
Tombo P075
Foto © Fundação Iberê
“Minha pintura em nenhum momento abandonou a estruturação da fase dos carretéis. Esses, embora pareçam soltos, livres no espaço (fundo) do quadro, estão solidamente interligados por linhas de força, como os corpos celestes no sistema planetário. Por isso, não sinto nenhuma afinidade com Pollock ou De Kooning. Minha volta à figura (em verdade nunca a abandonei) se deve ao esgotamento do tema e à necessidade de tocar a realidade que é a única segurança do nosso estar no mundo – o existir. […]”
LAGNADO, Lisette. Conversações com Iberê Camargo. São Paulo: Iluminuras, 1994. p. 27. (Fala de Iberê Camargo).
“[…] Nada mais profundo do que a superfície do mundo, alertava Camus. Nesse sentido, os carretéis me parecem um emblema plástico casual perfeito para designar nossa condição imperfeita de seres atirados ao real – a sua esquisita simetria, a sua instabilidade elementar, acresce o essencial buraco negro de sua profundidade. Buraco que, em geral, salta abrupto aos olhos, assinalado frontalmente pelo gesto nervoso e pelo óleo espesso, expletivo eloquente a pontuar o discurso inflamado dos quadros. O que anunciaria ele senão a angústia e a volúpia da redescoberta incessante da profundidade? Eis o que, longe da tradicional elevação sublime ao infinito, nos incita a estreitar nosso contato ansioso com a matéria multiforme do real para experimentá-lo de modo mais íntimo.
Os carretéis foram se trans-formando assim em agentes catalisadores, núcleos propulsores de espaço. Através da investigação sistemática de sua morfologia ambígua cumpria-se o ideal cubista da interação completa entre figura e fundo. Mas, ao invés de proceder à dedução analítica dos componentes da Forma ou promover a síntese entre planos múltiplos, o transe expressivo de Iberê preferia recorrer dramaticamente às contrações, distorções e expansões dos perfis da figura até ‘tomar’ o fundo e magnetizá-lo. Ora pela propagação de energia plástica, ora inversamente por seu poder de concentração, a malha cubista tendia a fechar-se graças à própria abertura voraz das figuras e sua capacidade de imprimir ao espaço a sua forma – a operação não consistia obviamente em pintar carretéis no espaço e sim transfigurar o espaço em carretel.”
BRITO, Ronaldo. Iberê Camargo. DBA Artes Gráficas: [São Paulo], 1994. p. 74.
“Para além de manter-se vinculado a uma história inexorável da pintura que surge a cada vez que o pintor age sobre a superfície da tela, apropriando-se, de modo mais ou menos intencional, de um conjunto de soluções pictóricas prévias, o que mais interessa é a possibilidade de tal prática continuar produzindo surpresas para o olho. A densidade histórica da pintura leva necessariamente a um adensamento do tempo da percepção, a um tipo de experiência perceptiva oposta à dispersão e afetação da imagem-movimento contemporânea. A pintura, diferentemente dos meios técnicos de produção de imagens, mais do que exigir, produz um olho sensibilizado pela materialidade da aparência, como que sempre percebendo as coisas com um olho-tátil, um olho que toca a pele do mundo. A própria luz na pintura diferencia-se por ter espessura; é uma luz-matéria.
Desse modo, vemos que a obra de Iberê, depois de ter ‘transformado a natureza em ritmos e sensações coloridas’, vai dar à pintura uma densidade material absolutamente determinante. Não era à toa sua briga obsessiva por boas tintas. A técnica não é um instrumento experimental, mas um processo experiencial. Ela não é um meio manipulável de fora, mas uma experiência vivida de dentro. A pintura em Iberê não é comunicação visual, mas formação visual. A forma nasce de dentro das camadas de tinta, do movimento das pinceladas, que ficam na superfície da tela para serem tocadas pelos olhos que as vêem.”
OSORIO, Luiz Camillo; SALZSTEIN, Sônia (org.). Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 73-74.
“Com Iberê, o corpo-a-corpo do pintor com a tela talvez atinja sua máxima significação. A acumulação de matéria, as raspagens e incisões por um lado; por outro, a construção-desconstrução de signos, que criam camadas sucessivas, que se escondem uns por baixo dos outros; e, ainda, as acumulações de cores, que vem do fundo, que se modificam sucessivamente, cada vez mais sombrias (talvez, pela própria acumulação), que criam e recriam nuances, sutilezas, muitas vezes por obra do acaso – reações plásticas e/ou químicas de cores sobrepostas e justapostas. Razões internas da própria pintura.
O corpo da pintura não é passivo: carne, osso, pele, sangue. Corpo que possui, também, suas próprias leis, não biológicas, mas plásticas. ‘As formas e cores mais premeditadas, quando se concretizam sobre a tela, são sempre surpresas.’ E o primeiro a surpreender-se é, sempre, o pintor. O quadro se autogera até certo ponto, o pintor descobre, incessantemente, a pintura, e se descobre na pintura.
‘Desejo atingir uma coisa simples, atingir a boa forma com economia de traços. Mas o simples não nasce logo. A matéria tem que virar víscera, para depois ser. Tudo nasce da dor.'”
CATTANI, Icleia Borsa. In: BERG, Evelyn. Iberê Camargo: coleção contemporânea 1. FUNARTE, Instituto Nacional de Artes Plásticas/ Museu de Arte do Rio Grande do Sul: Rio de Janeiro, 1985. p. 51.