Núcleo, 1963
óleo sobre tela
65 x 91,7 cm
Acervo Fundação Iberê

Tombo P078

Foto © Fundação Iberê

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“Retornando ao Brasil, voltei à paisagem e à natureza-morta com a preocupação de reencontrar o veio que, como já referi, pressentira nos primeiros quadros. Compreendi que o problema estava em mim, exclusivamente, e não nos outros, isto é, a solução estava dentro e não fora.
Daí por diante a minha pintura passou a ser conscientemente expressão: a energia das formas nas suas mútuas relações tornou-se a preocupação constante das minhas composições. Os carretéis, ponto de partida, da fase atual, a princípio estáticos, dinamizarem-se.
Inspirados no vôo dos pássaros, no movimento ondulatório das pandorgas, nos moirões à beira das estradas, que desfilam durante a corrida vertiginosa de um automóvel, serviram-me de base à dinamização das formas já então despidas de todo o aspecto representativo para se tornarem realidades em si mesmas. Seria difícil precisar o estímulo que me leva a realizar um quadro: revoada de pássaros, velocidade, cor, carretéis, fundos de sangas…
Algumas dessas coisas posso colocar sobre a mesa, como faz o pintor de naturezas-mortas. Mas como poderei colocar sobre essa mesa as formas que o inconsciente põe nas minhas mãos?”

MARTINS, Vera. Iberê Camargo, prêmio de pintura da Bienal. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 set. 1961. (Fala de Iberê Camargo).

 

“Os carretéis foram se transformando assim em agentes catalisadores, núcleos propulsores de espaço. Através da investigação sistemática de sua morfologia ambígua cumpria-se o ideal cubista da interação completa entre figura e fundo. Mas, ao invés de proceder à dedução analítica dos componentes da Forma ou promover a síntese entre planos múltiplos, o transe expressivo de Iberê preferia recorrer dramaticamente às contrações, distorções e expansões dos perfis da figura até ‘tomar’ o fundo e magnetizá-lo. Ora pela propagação de energia plástica, ora inversamente por seu poder de concentração, a malha cubista tendia a fechar-se graças à própria abertura voraz das figuras e sua capacidade de imprimir ao espaço a sua forma – a operação não consistia obviamente em pintar carretéis no espaço e sim transfigurar o espaço em carretel.”

BRITO, Ronaldo; SALZSTEIN, Sônia (org.). Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 124.

 

“[…] Assim, já não lhe importa o uso de cores que deviam estar nas camadas inferiores e não superiores de sua pasta, ou vice-versa; de tons sem transparência servindo de passagens que deveriam ser translúcidas, de pastas frescas sobre pastas frescas, sem esperar que sequem etc. Sob essa compulsória pressa, Iberê pinta… não, age, como um possesso da action painting. Através de camadas sucessivas de impasto, ora à pinceladas curtas e nervosas, o pintor confunde, mescla tudo, até sujar de branco as terras de sua matéria; ora, ao contrário, à espátulas violentas, de plano, funde e levanta escamas que marcam, em bordas latejantes e luminosas, o ritmo, ou antes, a cadência do próprio movimento do artista no trabalho.
Num momento dado, impõe-se um movimento centrípeto, que tende a fugir para a extremidade da tela, criando distância e fazendo espaço; em outro, dá-se, ao invés, um movimento centrifugo. O pincel então fuça, remexe a matéria, tende ao redemoinho, cisca (Núcleo, 1963). O artista é dominado por um fascínio estranho, – o de perder-se, emaranhado pelas entranhas podres da terra a dentro. Ou a golpes de espátula, faz brotar um movimento ascendente que, tomando largamente a superfície da tela, se define talvez por uma tendência a reagregar as formas dispersas, soltas, vindas da fase dos carretéis, quando com eles o artista construía uma macabra mas poderosa estrutura plástica de ossos e tíbias.
Pode-se divisar nessas novas formas rudimentares que se ligam entre si, como ramificações de um tronco, o aparecer de algo profundamente existencial, um ente que tem de vegetal, de animal, ou mesmo de simplesmente humano, e traduziria a nobre nostalgia no artista por uma afirmação figural, de marcada significação orgânica, sobre o fundo caótico, obscuro, informe, em perene fermentação. Suas últimas telas são reveladoras desse modo de ser direto, puramente experimental, ou melhor, fenomênico de abordar a pintura. Catando na imundície da matéria pedras cintilantes, ele manifesta, ao mesmo tempo, uma ânsia de elevar-se no espaço livre, que nele, contudo, é sempre borrascoso, com peso e gravidade, como se antes de o ser, ou ser céu, fosse mar, mar encapelado, vagas em arrepio à superfície.”

PEDROSA, Mário. Iberê Camargo: de 20 de maio a 5 de junho de 1963, Petite Galerie, Rio de Janeiro, RJ. Folder da exposição.

 

“Nas telas inaugurais do artista, como se sabe, o plano da pintura é mostrado em posição rigorosamente frontal, com a malha de carretéis disposta paralelamente ao observador e como que soldada à superfície do quadro. No princípio da década de 1960, esse plano vai aos poucos basculando, afrouxando suas amarrações tectônicas, e os carretéis, antes engastados numa superfície que coincidia perfeitamente com ele, perdem o prumo, até se verem propulsados a uma profundidade pantanosa e escura. No fim da década e ao longo dos anos 70, o protesto em face do plano se radicaliza: liqüidam-se as referências que ainda pudessem remanescer das coordenadas da visão e desaparece qualquer alusão à gravidade e à posição ereta de um observador.”

SALZSTEIN, Sônia. Ausência dos carretéis. In: ZIELINSKY, Mônica; DUARTE, Paulo Sergio; SALZSTEIN, Sônia. Moderno no limite. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2008. p. 42.