A idiota, 1991
óleo sobre tela
154,8 x 199,8 cm
Acervo Fundação Iberê

Tombo P085

Foto © Fundação Iberê

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“[…] Um embate contemporâneo, incerto e saturado, com a gênese e a história da forma na tradição pictórica do Ocidente seria talvez o mais próximo que se poderia chegar de uma caracterização concisa dessa pintura profunda, mas de impacto imediato, com acentos trágicos porém avessa à grandiloqüência, tão ardentemente individualista quanto generosamente pública.
A própria noção bíblica de criação e de obra vê-se questionada pela raiz nesse esforço para sustentar a visibilidade do real no momento mesmo em que este ameaça vacilar e diluir-se em aparências anódinas, simulacros inócuos ou no mero exibicionismo do catastrófico. Um quadro recente de Iberê Camargo resume uma autêntica arqueologia da forma – a sucessão e a supressão concomitantes dos gestos repassam todas as fases instituídas da Figura no ocidente para descobrir novas criaturas de pintura que anunciam justamente formas últimas, calcinadas, mas, afinal e sobretudo, Formas. Assim, nada menos do que nossos conceitos genéricos do Digno e do íntegro sofrem uma inversão drástica, pois só às custas de uma empresa terrível de liquidação e agregação se torna possível agora ‘depurar’ a essência do fato plástico. Tais figuras, íntegras e dignas em sua sabedoria ou idiotia trágicas, resultam obviamente de todas as desfigurações imagináveis.
No limiar da modernidade, Goya antecipou os horrores à espera da imaginação livre moderna no ato mesmo de exorcizar os persistentes fantasmas feudais. Iberê Camargo, no curso da modernidade tardia, constata a impotência da imaginação criativa perante a enormidade opaca da realidade contemporânea – só lhe resta escavar e escavar a essência histórica da pintura até ressuscitar a sua atualidade. Diante de sua flagrante inutilidade social, a pintura se revolta e empenha-se desmesuradamente na afirmação de seu valor autônomo como coisa qualificada, pensamento abstrato, absurdo expressivo que seja. Semelhante paroxismo de trabalho acaba por produzir presenças inúteis que, graças à sua inteligência e a intensidade emocional, acusam por contraste a futilidade da maior parte das presenças vigentes, simplesmente descartáveis porque ausentes quanto a si mesmas.”

BRITO, Ronaldo. Iberê Camargo. DBA Artes Gráficas: [São Paulo], 1994. p. 35-36.

 

“Nessa retomada trágica da figuração, há algo de comum entre Iberê e Giacometti. Em ambos a figura humana vinha como resposta trágica ao sentimento de abandono, de perda de um mundo compartilhável. São seres absurdos, assexuados, aquém de toda distinção humana. […] Abandono, perplexidade, solidão, são características do sujeito moderno em um mundo obcecado pela imediatez das imagens tecnológicas. A obra de Iberê esteve até o fim comprometida com a atualidade da pintura. Atualidade que indica a necessidade da pintura, ou seja, que seu ocaso seria a perda de uma dimensão única do aparecer das coisas.
[…] Sua vinculação histórica, por intermédio de um conjunto de operações poéticas, não restringe, mas potencializa sua singularidade como formadora de um modo particular de perceber o mundo.”

OSORIO, Luiz Camillo; SALZSTEIN, Sônia (org.). Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 75-76.

 

“[…] Vendo as novas telas, também fica quase impossível não associá-las aos retratos de Giacometti (outro latino, suíço-italiano). Aí comparece a mesma atenção obsessiva à erosão do tempo, a mesma impregnação dos traços e vestígios da vida. Em ambos sobretudo brilha a luz mortal do homem. Com a existência comum vazia e insípida, venal e banal, a realidade da morte assume um caráter positivo, transforma-se até numa fonte parodoxal de vitalidade. E se, como disse o artista, o seu quadro é um diálogo com a morte, creio que uma das surpresas […] é a energia extraordinária que irradia.
É necessário acrescentar, seguindo o paralelo, como as figuras recentes de Iberê resultam de um processo de dilapidação ainda mais drástico do que as de Giacometti dos anos 50 – o curto-circuito de figura-e-fundo é mais patente, a aproximação da superfície mais ‘perigosa’. E o que é sintomático: a interiorização das figuras dos anos 80 acaba ainda mais residual. Encontro nessas telas a espécie de tensão que me parece imprescindível a toda grande arte. Algo que não deveria dar certo e dá – calcados na matéria espessa e resistente, remexida e remoída, aparecem exatamente gestos dispersos e fugazes, autênticos flagrantes daquele movimento que Hegel considerava próprio do homem – a pura inquietude de vida.”

BRITO, Ronaldo. Iberê Camargo. DBA Artes Gráficas: [São Paulo], 1994. p. 21.

 

“[…] Especialmente nas últimas telas, a matéria freqüentemente surgiria lassa, desamparando as personagens; as cores, em sobreposições indecisas quanto a serem quentes ou frias, sujavam-se e aniquilavam-se reciprocamente e o gesto mostrava-se destituído da eloqüência que marcara a produção precedente. Eram, não se pode esquecer, tempos de celebração da ‘volta à pintura’, da qual o artista jamais havia saído, não por opção, mas por aquela necessidade interna, que o levava a testar continuamente a plasticidade da matéria e a resistir à empiria.
O preço de sua perseveração na pintura até aquele final do século XX fora justamente a perda da plasticidade, do movimento e da temporalidade da matéria, cujos signos haviam sido, por excelência, os elementos motrizes que povoaram toda a trajetória do pintor: carretéis, dados, bicicletas. Ora, àquela altura, as obras já não podiam experimentar esses objetos / acontecimentos em sua dimensão fenomenológica, visto que era dessa impossibilidade da experiência que tratava a interminável ‘morte da pintura’ à que o artista se dispusera, e que terminara por conduzi-lo àquele ponto irrevogável. Entretanto, as obras teatralizavam aqueles acontecimentos sem ressaibos de paródia, sem tematizá-los; expunham-nos num cenário minimalista, a narrativa e a retórica ausentes, as personagens não particularizadas por qualquer psicologia individual. Aí estavam, afinal, traços essencialmente anti-heróicos da obra de Iberê, testemunhando, a despeito da imagem romântica que dela se cristalizou, uma inesperada dimensão realista – um realismo que não seria, evidentemente, demonstrativo nem filho das luzes, mas exasperadamente visionário.”

SALZSTEIN, Sônia (org.). Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac Naify, 2003. pp. 56-57.