Autorretrato, 1984
óleo sobre madeira
35 x 25 cm
Acervo Fundação Iberê

Tombo P182

Foto © Fundação Iberê

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“Eu trabalho como que tirando de um poço cabalístico o que é meu interior, tudo aquilo que se reúne em mim e que de repente transfigura-se numa tela. No fundo, acredito que tudo o que fazemos é sempre um autorretrato. E, por isso, a mesma metáfora; porque está sempre a refazer a ele próprio.”

ROSA, Celso. Iberê: ‘Quero a arte brutal, viva’. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 23 set. 1984. (Fala de Iberê Camargo).

 

“Em quase todos seus quadros, Iberê ‘puxa’ várias cores ao mesmo tempo. Em meio à massa de tinta, a direção das pinceladas ou da espátula e certos resquícios de cor vão produzindo ligeiras diferenciações, que em seu conjunto traçam formas instáveis. Como no fabuloso Autorretrato de 1984, os resíduos mais claros e o sentido dos movimentos do pincel parecem querer se livrar da espessura que paralisa seu aparecimento e com isso ganhar uma presença mais plena. Mas como se livrar daquilo que lhes dá realidade, embora também lhes recuse uma afirmação decidida? Estreitamente unidas por esse meio gelatinoso, forma e matéria mantêm entre si uma relação de estranhamento. Aquilo que dá corpo às formas constitui também uma ameaça, assim como a perfeita formalização da matéria seria uma concessão inaceitável às ações instrumentalizantes. Mesmo empastando-se reciprocamente, forma e matéria relacionam-se ansiosamente, sem que possam aderir uma à outra. E a existência torna-se uma afirmação impossível. Os movimentos que nos dão realidade são também aqueles que nos comprometem com uma dinâmica terrível, que foge a nosso controle. E no entanto agimos, mal começa o dia.”

NAVES, Rodrigo. O fundo movediço das coisas. In: BRITO, Ronaldo. Iberê Camargo: mestre moderno. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 1994. p. 26.

 

“No Autorretrato, o rosto é uma concreção e uma concentração do espaço. Indicado por poucas linhas, ele acumula matéria nos olhos e sobrancelhas e na linha que vai destas ao queixo, desenhando no percurso nariz e boca. O rosto não é representação, ele é matéria, reduzido a esse eixo contínuo que atravessa a tela em seu sentido vertical. As cores e as pinceladas do rosto são as mesmas que atravessam todo o espaço; o contorno da cabeça, de um lado, é indistinto. Novamente, a figura é o lugar: lugar de indagação sobre si mesmo e sobre os outros, após ser ator de uma tragédia que o marcou fortemente; e, também, lugar de questionamento sobre o status da figuração na arte, naquele momento de todos os propalados ‘retornos’ a ela. […]
A pintura matéria de toda essa fase de mais de vinte anos (1964-84), marcada pela linha, pela pincelada, pela forma-tinta (mais do que forma-cor), foi contemporânea de várias situações-limite. Crise sociopolítica, com a instauração da ditadura militar; crise ética e estética, com o drama que vivenciou a nível pessoal; crise do status da pintura, entre figuração e abstração, num período em que esta última apresentava grande força no contexto artístico. Iberê reivindicou o direito permanente e inalienável à figura, mesmo quando ela afastou-se, em suas obras, do princípio figurativo, arrancando-a, desdobrando-a e deslocando-a ao corpo-tela, fazendo com que esse espaço da pintura pusesse em questão, continuamente, as figuras e os lugares.”

CATTANI, Icleia Borsa; SALZSTEIN, Sônia (org.). Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 88-89.