Ilustração para o conto Sacos de Deus, 1988
nanquim sobre papel
33 x 22 cm
Acervo Fundação Iberê
Tombo D0112
Foto © Fabio Del Re_VivaFoto
Desenho elaborado para ilustrar o conto “Sacos de Deus”, escrito por Iberê Camargo e publicado em 1988 pela editora L&PM no livro “No andar do tempo: 9 contos e um esboço autobiográfico”:
Sacos de Deus
“Deus, reclinado sobre confortável almofadão de nuvens, tendo a seu lado dois grandes sacos, um à direita, outro à esquerda, joga displicente a sorte dos homens.
O saco da direita contém o nome de todos os viventes da terra, gravados em canudinhos de papiro cuidadosamente dobrados.
O saco da esquerda contém todos os males que afligem as criaturas, de permeio a escassas mercês que a Divina Providência lhes concede.
Para distribuí-los, Deus mergulha a mão direita no saco dos nomes e dele retira, ao acaso, um canudinho que entrega a um dos santos auxiliares. Este o desenrola, lê o nome ali escrito e o anuncia. A seguir o Senhor mergulha a mão esquerda no saco dos malefícios e mercês, retira um canudinho semelhante ao primeiro e também o entrega a um dos seus assistentes celestes, que o desenrola, o lê e revela o conteúdo silabando: Dor-de-cu. Deus sorri. A santa que o assiste faz um muxoxo, quase um bico, para sufocar o riso. No mesmo instante, o sorteado sente uma terrível fisgada no cu e se contorce. Assim começam os nossos padecimentos sem explicação, sem causas. Chamam a isso de destino.
Desde a criação do mundo, Deus entretém-se neste jogo: castigar e premiar suas criaturas. Assim distribui catapora para uns, sarampo para outros e males muito maiores. Às vezes, como os governos dos povos, concede algum benefício. Mas, como acontece aqui na terra, lá no alto a sorte também não é cega. Os santos, para atenderem os seus devotos, manipulam o sorteio. Trocam os papeizinhos e, na leitura, os nomes. Os mais astutos introduzem as mãos nos sacos – já com muitos furos –, mexem, remexem, selecionando os papeizinhos e, às vezes, num passe de mágica, até colocam os canudinhos diretamente na mão de Deus. Os mais hábeis na trampa são os mais milagreiros. Há entre eles exímios prestidigitadores, como São Peidolão, patrono de Porto-Gai. Em seu nome publicam-se, diariamente, na imprensa páginas e páginas de preces, agradecimentos acompanhados de pedidos, possíveis e impossíveis. Uma comovente manifestação de fé e também um êxito publicitário. Porém, outros há, sérios e tímidos, que caíram em descrédito por não atenderem os pedidos que lhes são dirigidos.
Esses, coitados, caíram em tal descrédito, que foram banidos do céu e tiveram suas imagens retiradas das igrejas.
Assim é no céu, como na terra.”
Porto Alegre, setembro de 1986
“O leitor […] terá, neste conjunto de nove contos, um novo aspecto da sensibilidade de Iberê Camargo. […] Se, como diz Iberê, vida e arte não se separam, sem dúvida os contos que agora temos neste volume iluminarão partes da vida e da pintura deste artista excepcional, responsável, entre outros, pelo surgimento do Atelier Livre de Porto Alegre, escola livre que formou alguns de nossos mais importantes artistas plásticos a partir da década de 60, fato que ele, humildemente, não revela no seu depoimento, ou preferiu esquecer, mas que lhe devemos, de qualquer maneira.”
Antonio Hohlfeldt, na apresentação do livro No andar do tempo: 9 contos e um esboço autobiográfico, 1988