Ilustração para o conto O vampiro mamão, 1988
nanquim sobre papel
33,1 x 45,7 cm
Acervo Fundação Iberê
Tombo D1542
Foto © Fabio Del Re_VivaFoto
Desenho elaborado para ilustrar o conto “O vampiro mamão”, escrito por Iberê Camargo e publicado em 1988 pela editora L&PM no livro “No andar do tempo: 9 contos e um esboço autobiográfico”:
O vampiro mamão
“Não se creia que o vampiro mamão foi um desses cadáveres ressuscitados, repugnantes, de faces lívidas e presas enormes, gotejantes de sangue, que, através dos séculos, atemorizam os anglo-saxões e se nutrem do seu nobre sangue.
Concordo que o Mamaqui, como bem o chamaram, sofreu a sede insaciável da sua espécie, alimentou-se da seiva humana e que, como entidade da noite, teve a fobia da luz, o temor do cruzeiro e os demais atributos que lhe são próprios. Como seus iguais, preferiu as noites de breu, sem lua, para errantes caminhadas, onde, aqui e acolá, assaltava as mulheres eleitas. Desdentado, sem necessitar de presas perfurantes, agudas e ocas como as das víboras, tinha os lábios macios e flexíveis, que num muxoxo se transformavam numa pequena tromba, num bico chupador. A boca adaptava-se anatomicamente à extração do seu alimento único, o leite. E este ele encontrava abundante nos seios fartos das jovens mães. Dotado de mobilíssimas mandíbulas e elásticas bochechas, que se inflavam na sucção como o papo do sinimbu, aconchegado à vítima, esvaziava-lhe os seios, enchendo aos borbotões o ventre de pipa, enorme e bojudo. A língua longa e estreita, franjada na ponta, lambia gulosa, no preâmbulo do repasto, o bico da mama. De braços abertos, na sua tradicional capa negra, era um grande pássaro que penetrava pelo vão de uma janela ou pela bandeirola de uma porta. Seus passos eram inaudíveis como se o corpo não tivesse peso. Também podia penetrar nos quartos por baixo das portas, ou pelo buraco da fechadura. Ferrolhos, trancas, ratoeiras, experimentados em vão, e muitos outros modernos meios de segurança, assim como anteparos, mostraram-se inúteis para lhe impedir a presença.
Foi assim que o descreveu o coronel, pai de treze neonatos mortos de inanição, embora sua mulher, saudável e forte, tivesse leite capaz de nutrir uma manada de terneiros. Para desgraça da sua descendência, o coronel só surpreendeu o vampiro mamão após doze anos de luto contínuo. Lá estão no cemitério do Cati, treze sepulturinhas enfileiradas, quase em forma, como convém ao espírito militar. Até então a perda dos filhos não tinha desanimado o coronel. Bem cevado, já agora estourando dentro da roupa, era visto uma vez por ano a subir a lomba do cemitério, com um caixão de anjo debaixo do braço. Sempre o acompanhava Dona Malvina, madrinha e parteira da defunta prole (ela porfiava em ter um afilhado), com um buquê de flores escolhidas segundo o sexo da criança. Comentou-se que Dona Ermídia, sua mulher, fora de conivência passiva, como vaca mansa que se deixa ordenhar. Os vizinhos fizeram conjeturas, espalharam versões sempre novas e maldosas. Teco, o porteiro, antigo ordenança do coronel, contava, à boca pequena, que Dona Ermídia ficara com o corpo – especialmente o umbigo – coberto de manchas arroxeadas, chupões; e que o coronel fora obrigado a usar da espada para desgrudar o vampiro mamão do seio da mulher. Teimava em associar o caso ao inexplicável morticínio das galinhas no sítio do seu Rufo. Coisas do diabo, todas elas de pescoço torcido, traseiro depenado, foram jogadas por cima da cerca! Na ocasião, suspeitara-se de um seminarista que nada tinha de gordo. De outra feita, dizia que o coronel surpreendera o vampiro mamão na cozinha, em cima da mesa, sugando ambos os seios de Dona Ermídia com seu focinho bifurcado; e que o tinha puxado pelas orelhas com tanta força que estas lhe ficaram nas mãos. Explicava que tinha sido um rebuliço, que a cozinha tinha ficado uma sujeira, com móveis e louças quebradas. A Fula – gata de estimação – andava seguindo um cheiro que ninguém sentia e um rastro que ninguém via. Ficou arisca. Quando vê Dona Ermídia, arqueia o lombo, eriça o pelo e assopra. – Os bichos veem coisas!… – concluía o Teco com ar de mistério. – Coitada! Mamada… mamada pelo coisa cão! – comentava com indisfarçável malícia. Ele atiçava as brasas e espalhava a fumaça.
Dona Ermídia, que suspeitava da maledicência dos amigos, falava das alucinações do coronel, demonstrando preocupação por sua saúde. Lamentava não ser mãe. As lágrimas umedeciam-lhe os olhos amendoados. Um gemido de pomba escapava-se dos seus lábios. Tinha um sonho constante, pertinaz, quase uma fixação, uma parada de cena no carretel da memória. Sonhava que era o mar, às vezes um olho-d’água, uma vertente, onde se dessedentavam homens. Às vezes também sonhava que era um odre pendente do pescoço peludo de um são-bernardo, dando de beber a bocas invisíveis em planícies sem fim. No sonho, ou melhor, quase no fim do sonho, se sua duração está no tempo, sentia, ou imaginava sentir, a presença, revelada no hálito forte e na cócega de uma barba, do Amaro, vizinho de apartamento.
Quando a lua se fazia redonda no céu, um uivo lamentoso enchia as ruas atropeladas do bairro. Dizia-se então que algo se movia como o vento dentro do vento, estalando como uma pilha de odres em disparada. Era o Mamaqui.
Na noite do flagrante, noite do décimo terceiro ano, o coronel acordara no momento preciso. Dona Ermídia fazia questão de esclarecer que sempre se queixara ao marido daqueles momentos de lassidão, de desfalecimento e peso sobre o corpo. Sempre o sacudia em vão para arrancá-lo do sono quando pressentia que algo a acompanhava.
A presença do coronel vestido de campeão do mundo em horas tão tardias da noite à porta do seu ordenança foi de estarrecer. Ele ignorava que seu velho chefe, embora o soubesse ardoroso aficionado do futebol, tivesse a ideia infantil de dormir fardado. Muitas vezes, à noite, ouvira gritar goooool! sem jamais reconhecer a poderosa voz de comando do chefe. Mas o estado emocional do coronel não permitia indagações sobre o seu traje de dormir, pois só o motivo da sua presença era importante. Teco, acostumado a obedecer sem discutir nem pensar, aceitou de imediato a versão. E constituiu-se testemunha ocular, convicto, por disciplina. Ficou decidido que fariam as buscas nas noites sem lua, no cemitério, que é a morada dos vampiros. E assim começou a desatinada procura. Munidos de pás, picaretas, escadas, cordas, algemas e, naturalmente, a estaca com que atravessariam o coração do vampiro (a estaca da velha barraca de campanha do coronel), começaram a violar túmulos, tendo o cuidado de suspeitar, por prudência, de túmulos de indigentes. Diante do insucesso da busca, da redobrada vigilância do coveiro e do alarma da Irmandade das Almas, enveredaram por outras sendas, examinando outros lugares suspeitos. Dizia-se que o vampiro mamão morava na torre da igreja, debaixo do sino; que era compadre do vigário. Sugeriram pistas e lembraram defuntos que, em vida, não haviam professado boas crenças. Misturaram vivos e mortos. O coronel tomava nota num livro de receitas de bolos da sogra; misturava defuntos e doces. Mandou abater uma caixa-d’água que, pela velhice e abandono, imaginou ser lugar capaz de abrigar vampiros. Estava convencido de que o ente antinatural, nos dias difíceis que correm, se contentasse com a escuridão dos porões das casas velhas. Os proprietários de granjas e de casas antigas eram constantemente visitados pelo coronel, que, já sem rodeios, indagava dos antecedentes dos seus antepassados, pedindo atestados de nascimento, de óbito e escrituras. Remexia sem cerimônia álbuns de família e examinava com lente as fotografias desbotadas, dependuradas nas salas de visitas. Para atingir os sítios mais afastados, usava um velho jipe de pneus carecas e um só farol, o Caolho, que subia e descia ladeiras, zumbindo como um besouro capenga. Tiros reboavam pelo mato. Um disparate! De uma feita fez despir um obeso entregador de leite, para ver se a barriga tinha a forma de barril, como a que vislumbrara na fugaz aparição. O coronel já não se ocupava com a administração do edifício. Até então tinha sido um síndico zeloso e extremamente exigente. Conta-se que certa ocasião mandara o porteiro juntar pontas de cigarros e palitos de fósforo jogados nas áreas, corredores e hall de entrada, para devolvê-los aos seus donos.
Valendo-se do seu curso de estratégia militar, o coronel passava agora longas horas debruçado sobre a planta da cidade, assinalando com cores diferentes as vias de acesso ao edifício. Como deixasse de lado os cruzamentos (um vampiro jamais enfrenta a cruz), não conseguia determinar o caminho do Mamaqui. Já não levava em consideração a sua natureza de fantasma.
Apesar da perseguição, o vampiro mamão parece que continuava a frequentar a casa do coronel. Não que o vissem, mas uma presença ali era evidente. Dentro do guarda-roupa de Dona Ermídia fora encontrado um traje de homem de 1800 e uma luva de seis dedos. A mulher do coronel não soube explicar a procedência. Os boatos e as buscas continuavam. Hipotéticos cercos foram apertados, afrouxados e naturalmente rompidos. Com o passar do tempo o coronel foi tornando-se cada vez mais meditabundo; já não trocava palavra com a mulher. Certa noite desapareceu. Nessa noite uma tempestade quebrou vidraças, destelhou casas, desenraizou árvores, arrancou postes, e uma enxurrada desceu pelas ruas aos borbotões.
Dias depois encontrou-se o corpo do coronel cravado ao chão com uma estaca pela barriga desmesuradamente estufada. Jamais se teve notícias do ordenança. Dizem também, embora ninguém fale abertamente, nem possa provar ou contestar, que Dona Ermídia teve um filho, que nasceu morto, com focinho de porco e asas de morcego.”
Dezembro de 1970
“O leitor […] terá, neste conjunto de nove contos, um novo aspecto da sensibilidade de Iberê Camargo. […] Se, como diz Iberê, vida e arte não se separam, sem dúvida os contos que agora temos neste volume iluminarão partes da vida e da pintura deste artista excepcional, responsável, entre outros, pelo surgimento do Atelier Livre de Porto Alegre, escola livre que formou alguns de nossos mais importantes artistas plásticos a partir da década de 60, fato que ele, humildemente, não revela no seu depoimento, ou preferiu esquecer, mas que lhe devemos, de qualquer maneira.”
Antonio Hohlfeldt, na apresentação do livro No andar do tempo: 9 contos e um esboço autobiográfico, 1988