Ilustração para o conto O mosquito, 1988
nanquim sobre papel
33,2 x 22,6 cm
Acervo Fundação Iberê

Tombo D3031

Foto © Fabio Del Re_VivaFoto

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Desenho elaborado para ilustrar o conto “O mosquito”, escrito por Iberê Camargo e publicado em 1988 pela editora L&PM no livro “No andar do tempo: 9 contos e um esboço autobiográfico”:

O mosquito

“Ao fazer a barba pela manhã, vejo pelo espelho um mosquito pousado na parede do banheiro, às minhas costas.
É apenas um traço vertical, minúsculo risco a creiom, na alvura vítrea do azulejo.
Vou aniquilá-lo, penso comigo, com um golpe de toalha. Concedo-te a vida somente o tempo que necessito para terminar de fazer a barba. Devo usar a lâmina com cuidado, devagar, para não cortar o lábio superior já chupado pela idade.
Torno a fitar o mosquito. Ele continua imóvel na imagem do espelho, à espera, sem o saber, de sua morte, como todos os viventes. Ele vive porque lhe concedo viver. Aumenta minha prepotência sobre sua mísera existência. Cresce-me a presunção de dispor da vida e da morte.
Vou aniquilá-lo agora.
Torno a ensaboar a face com um pincel de cerdas fartas e macias que comprei em Paris muitos anos faz. Agora passo a gilete a contrapelo para escanhoar a face. Olho novamente para o espelho à procura do mosquito. Ele não está mais sobre o azulejo.
O sol penetra no banheiro pelo basculante – devem ser dez horas da manhã – e torna a parede de azulejo ainda mais vítrea, mais luminosa e levemente dourada. Continuo a procurá-lo, esquadrinhando paredes e teto. Ele muda de pouso leve como o ar.
Ah! Ei-lo pousado na parte inferior do trinco da porta. Parece escondido. Ali oculto, sorrateiro, talvez com a intenção de picar a mão de Deus.
Naquele lugar, a parte inferior do trinco, seria invisível para um homem de elevada estatura, que estivesse sempre em pé. Não sabe ele que o seu Deus também senta e usa o bidê do banheiro. Isto vai perdê-lo.
Terminada a barba, distraído, entro para baixo do chuveiro.
Ora! Ora! Esqueci o mosquito.
Espio pela fresta da cortina. O mosquito está outra vez pousado na parede, à mercê da minha vontade, do capricho de Deus!
– Logo que termine o banho te transformarei em pó. Serás pó, serás outra vez o nada.
Imagino-me brandindo a toalha, espatifando-o enquanto grito: “To be or not to be. That’s the question!”.
Fecho a torneira do chuveiro, apanho a toalha e começo a enxugar o corpo. Olho para a parede. O mosquito não está mais lá, não está em nenhum lugar. Vive por uma distração de Deus.”

 

“[…] A história apresenta um sujeito que, pela manhã, vê um inseto e planeja matá-lo não sem antes fazer a barba e usar o bidê e o chuveiro do banheiro. Quando percebe que o inseto que programara aniquilar não está mais na parede, afirma com uma falsa magnanimidade: ‘Vive por uma distração de Deus’. Iberê conta que, ‘desde guri’, ficava observando a movimentação dos insetos, emprestando-lhes sentimentos. A arbitrariedade da vida, mascarada através da observação de pequenos animais demonstra o quanto a ausência de regras, culminando no capricho de um Deus — ora atento, ora distraído —, atormenta o artista.
Emprestar uma alma aos bichos remete diretamente aos livros de Clarice Lispector onde um amplo repertório de gatos e ostras, tigres e panteras, formigas e pássaros aparecem, animados por intensos circunlóquios. Neles, a autora ensaia outras possibilidades de existência, mas o exemplo mais avassalador está sem dúvida em Água Viva, com a imagem da gata-mãe-criadora que come a própria placenta para adquirir sua força. É obra que nasce de si mesma. Uma correspondência existencial com Clarice não seria aleatória. Publicou uma entrevista com o artista, na qual confronta os mecanismos de criação na pintura e na escritura. Esse encontro no entanto não o tornou leitor assíduo da escritora; nela, teria encontrado uma célula gemelar para suas indagações sobre a existência de um mundo abominável, o fluxo aterrador do tempo, o desejo de potencialidade, a dor da vida exacerbada, o enigma da morte, a sensação de não pertencer ao gênero humano […].
O desespero é um sentimento que afina indivíduos em torno de uma mesma modulação existencial. Para o desesperado, viver é um fardo de conteúdo febril. Excessiva, fremente, a existência só conhece situações liminares. […] Inconformados diante da desumanização da existência, ‘há muito já não sou gente’, ambos gritam para reivindicar a responsabilidade de seu destino.
O que resta é uma urgência diante da estupidez de um Deus que insufla vida tendo estabelecido a certeza da morte. Sem recurso, o desespero é um estado do qual não se convalesce. Introduzindo a reflexão existencialista, o filósofo Kierkegaard pergunta-se se o desespero é uma ‘vantagem’ ou um ‘defeito’, e chega a atribuir essa ‘doença mortal’ à própria humanidade: ‘Ser passível deste mal nos coloca acima do bicho, progresso que nos distingue de forma bem diferente que o andar ereto, signo de nossa verticalidade infinita ou do sublime de nossa espiritualidade’.
O instante só pode ser percebido de soslaio, embargado pela névoa que já encobria os ciclistas de Iberê protegidos do mau tempo e esquecidos da morte. Mas nem mesmo a imortalidade, lembrada como um ‘tormento de Deus’, é capaz de amortecer o desespero. Nem mesmo uma vaga idéia de eternidade, perpetrada através da obra que fica, pode devolver ao artista a noção de liberdade. A infância, a ancestralidade da pintura, o mínimo gesto, toda a existência é investida do peso da dúvida. Eis o sentimento irremediável do artista que, resoluto, frontalmente se entrega ao pânico da expressão.”

LAGNADO, Lisette. Conversações com Iberê Camargo. São Paulo: Iluminuras, 1994. p. 122-124. (Observar notas na fonte).

 

“O leitor […] terá, neste conjunto de nove contos, um novo aspecto da sensibilidade de Iberê Camargo. […] Se, como diz Iberê, vida e arte não se separam, sem dúvida os contos que agora temos neste volume iluminarão partes da vida e da pintura deste artista excepcional, responsável, entre outros, pelo surgimento do Atelier Livre de Porto Alegre, escola livre que formou alguns de nossos mais importantes artistas plásticos a partir da década de 60, fato que ele, humildemente, não revela no seu depoimento, ou preferiu esquecer, mas que lhe devemos, de qualquer maneira.”

Antonio Hohlfeldt, na apresentação do livro No andar do tempo: 9 contos e um esboço autobiográfico, 1988