Ilustração para o conto O relógio, 1988
nanquim sobre papel
33 x 22 cm
Acervo Fundação Iberê
Tombo D3034
Foto © Fabio Del Re_VivaFoto
Desenho elaborado para ilustrar o conto “O relógio”, escrito por Iberê Camargo e publicado em 1988 pela editora L&PM no livro “No andar do tempo: 9 contos e um esboço autobiográfico”:
O relógio
“Aquela latrina, no fundo do quintal, construída de tábuas velhas carcomidas pelo cupim, e que se sustenta desaprumada sobre a fossa, está infestada de aranhas. Estão escondidas nas juntas, debaixo dos sarrafos. Sua presença é evidente: pequenas patas despontam fora dos esconderijos e revelam o corpo redondo, mole e chato. Savino pensa que as aranhas possam, de improviso, sair das frestas e atacarem. Esta ideia o aterroriza. Dentro da latrina, a luz é coada: penetra pelas estreitas frestas de ventilação abertas em cima e embaixo da porta, e também pelos furos do telhado de zinco.
Acocorado sobre o assento, Savino apressa-se, acossado pelas aranhas e pelas moscas que, obstinadas, o molestam.
Ao descer do banco segurando as calças que lhe escorregam pernas abaixo – procura não pisar nas sujeiras espalhadas pelo chão –, ouve um baque abafado dentro da fossa. Volta-se e vê, através do buraco do assento, seu relógio desaparecer, lentamente, numa imundície espessa, escura, variegada de amarelo-laranja.
– Oh! Meu relógio – exclama Savino, contrafeito.
Aquele relógio antigo de prata cinzelada é a única herança que recebeu de sua avó. Não pode perdê-lo. Por isto, decide reavê-lo a qualquer custo.
Resoluto, mete dentro da fossa uma enxada que encontra no fundo do pátio. Ele a mergulha no lugar exato onde viu desaparecer o relógio. Na primeira tentativa, apanha-o. Quando o relógio já lhe está quase ao alcance da mão, escorrega da lâmina da enxada e recai na fossa.
Contrariado, Savino torna a introduzir a enxada no buraco, com a esperança de apanhá-lo uma outra vez. Inútil. Obstinado, rasteia a enxada em todas as direções da fossa, tateia com mão de pescador experiente, mexe e remexe a merda. De vez em quando, ergue-a com cuidado, devagar, devagar, com a esperança de trazê-lo à superfície. Não se desencoraja. Continua a sondar e a mexer e remexer. O fedor é insuportável. Para não senti-lo, cobre o nariz com um lenço. E continua a busca. As moscas zumbem dentro da fossa, batem-lhe no rosto, embarafustam-se nos seus cabelos. Embora fatigado, Savino não esmorece. Prolonga a inusitada busca até que a luz do dia se apague. Relutante, transfere-a para o dia seguinte. Excitado, não dorme. A procura continua na mente. Anseia que a noite acabe, mas esta se prolonga lenta, pesada, como jamais em toda a sua vida.
Savino vive cada fração de tempo fragmentado pelo tique-taque do relógio perdido. Os primeiros raios de sol iluminam sua figura esguia curvada sobre a fossa. Obstinado, continua a remexer na fossa que agora quase transborda, devido à chuva da noite. Para tocar o fundo, debruça-se sobre o assento, encosta o rosto no buraco, mergulha e agita enxada e braço dentro da merda, que redemunha. Savino, frustrado pelo insucesso da busca, irrita-se. Xinga céu e terra. Impaciente raspa aquele fundo escorregadio e bate-lhe com violência com o olho da enxada. As pancadas ressoam abafadas, sem eco. Às vezes, atola no fundo. Ele a libera com dificuldade. Irritado se exalta, se impacienta. Bate com redobrada violência o fundo da fossa.
Após dois dias de busca incessante, encontra elos da corrente. Estimulado, redobra os esforços e decide esvaziar a fossa. Começa a retirar da latrina seu conteúdo fedorento, pegajoso, que amontoa sobre folhas de zinco espalhadas pelo pátio. No seu vaivém deixa atrás um rastro imundo. Ajoelhado, revista minuciosamente cada monte com um graveto, espalhando e separando a merda em pequenas porções. Examina, apalpa cada fragmento. Na busca, reduz a merda a grúmulos. À medida que se demora e que se adentra na busca, a excitação aumenta. Apaixona-se. Não lhe importam mais as aranhas, o nojo e o fedor. Perde todo o escrúpulo: usa as próprias mãos. Com os dedos esmaga cada caroço que encontra. Desfaz, esmiúça ávido cada nó suspeito na avidez de encontrar os preciosos rubis. Às suas mãos enredam-se pedaços de panos apodrecidos. A merda gruda-se aos seus dedos. Seu rosto se umedece de um suor turvo que lhe escorre pelo pescoço. A camisa amarelece, uma pasta escura endurece a calça nos joelhos. A postura o cansa, sente as pernas entorpecidas. Para recuperar-se, muda de posição: ora de cócoras, ora de joelho, ou, então, apoia-se sobre o joelho direito, depois sobre o esquerdo. Circula em torno dos montes e inadvertidamente os pisa. Os pés enlameiam-se. Os fragmentos do relógio que encontra, os esconde num lenço que traz atado à cintura.
– Destroços, destroços – repete.
Ele tem a intenção de remontar o relógio. Dia e noite se alternam. Certo dia, encontra o mostrador, depois os ponteiros. “O tempo não para”, pensa. Ao esmiuçar a coleta diária, encontra a âncora e uma roda. Embevecido, demora-se a examinar aquelas peças, regirando-as entre os dedos. Com os olhos marejados, as envolve com ternura.
– Quero-o como antes, inteiro.
Sobre a enxada enrola-se estranha serpente: um suspensório.
Ele o desenlaça e com arte o estende por terra, desenhando um ipsilone. Encontra também um soldadinho de chumbo com a perna quebrada, uma cornetinha e carretéis. Savino comovido está a ponto de chorar.
– Poço encantado, transformas as coisas: estes são os meus brinquedos!
Também retira da fossa uma botina rota, desbeiçada, que sacode, que esvazia, que arranca o forro apodrecido. Enfia-lhe a mão no bico. Esta se emplasta. Recolhe pedaços de papel empapados que se desmancham entre suas mãos. Vasculha cada vinco, os mais miúdos se desfazem. Sobre a palma de sua mão, brilha uma medalhinha. Savino faz o sinal da cruz. A merda se estende pelo pátio em montículos que no decorrer da semana tornam-se grandes e pequenos, mudam de aspecto à medida que Savino os revista.
As galinhas atraídas pela imundície acorrem: brigam, pisoteiam, tropeçam e escorregam sobre a merda. Esgravatam e bicam. Savino, de cócoras, agitando os braços as enxota. As galinhas saltam, esvoaçam com cocoricós dissonantes. Ele grita: “Desgraçadas! Malditas!”. Teimosas retornam em bando. Afundam as patas na merda que agora se estende por toda a parte. Uma delas, fugindo, leva qualquer coisa que balança pendente do bico. As outras a perseguem, disputam para tirá-la. Algumas se avizinham cautelosas, desconfiadas, parando a cada passo: torcem o pescoço como uma mola emplumada que se move a impulsos e o espicham, avizinhando ao chão um olho redondo: este pisca, depois permanece fixo, aberto, e novamente pisca. Savino se enraivece. Persegue a mais teimosa, joga-lhe paus e pedras que encontra. Assustada a galinha corre gambeteando, salta contra a cerca. Procura escapar. O alarido das galinhas assanha o cão que, aos tirões, tenta se soltar da corrente. Late ameaçando. Savino ralha:
– Quieto, quieto, Açafrão! – O cão recalcitra em obedecer. Rosna e uiva.
Savino retorna ofegante, braços caídos, e de novo se põe de joelhos junto a um monte e continua a revistar. Ele defende sua coleta. Receia que as galinhas engulam os pedaços do relógio, misturados à imundície.
Está também preocupado com a ameaça da chuva. Um temporal, frequente no verão e sempre imprevisto, espalharia a merda e poria tudo a perder. Só Deus sabe onde iriam acabar as peças do relógio.
– Inimigos, inimigos por toda a parte – se diz pensativo. – Como proteger a coleta à noite? Talvez cobri-la com um plástico, dormir-lhe ao lado para vigiá-la.
Por cima da cerca, desponta uma cabeça: um guri, um moleque.
Junto, aparecem os companheiros, um pequeno bando, saído não se sabe de onde.
– Mãe, vem ver o que faz o vizinho – grita uma esganiçada voz de falsete. Aparece toda a família. Não compreendem o que acontece. Olham estarrecidos.
– Ei! Que faz? – pergunta um guri mais atrevido.
Savino nem sequer o olha: apenas levanta a mão no ar e faz um gesto vago. Insatisfeita, a pequena assistência desata numa risada zombeteira. Os guris assobiam. Algumas pedras voam e caem no pátio, perto de Savino. Ele não se importa. Está inteiramente absorto a remexer na merda. Fora isto, nada mais conta. Sente na pele a frigidez, a maciez pastosa daquela matéria sovada. Esta amolece, muda a forma, separa-se e aglutina-se ao toque. A cabeça de cabelo cor de cobre, o rosto salpicado de sardas, abrasado pelo sol, apoia-se sobre um joelho. As mãos trabalham dentro da merda. Savino fecha os olhos, dilata as narinas e aperta os lábios. Seu rosto ora reflete prazer anelante, ora sofrimento. Um suspiro lhe escapa do peito no instante em que encontra uma das peças do relógio. Ele as limpa na manga da camisa e as guarda no lenço: vísceras de aço do coração do tempo, perdidas e reencontradas na imundície.
– É preciso recolocá-lo em moto. O tempo não para. Atrás dele, as risadas continuam. – É louco, louco de atar.
– Eu sempre o achei estranho, diferente – acrescenta uma mulher.
Savino contrai o rosto num esgar. Os moleques não cessam de motejá-lo:
– Come merda! Co-me-mer-da! Sim, sim, é louco.
– Procura um tesouro escondido – acrescenta um outro. – Põe merda na balança – diz uma velha, gargalhando.
Uma pedrada atinge Savino na face. Ele não a sente. Está preso de um frenesi: contrai o rosto, acende o olhar, e, concentrado, ergue no ar a mão crispada como para agarrar qualquer coisa que lhe escapa da mente. E novamente afunda os braços na merda até os cotovelos: esta escapa em fitas entre seus dedos.
Não pode parar. Sujo, fedorento, exausto, arrasta-se de um a outro monte. Os dias se sucedem. A merda ensolarada enxuga-se e racha. Savino, exaurido, ardendo em febre, se obstina: com as mãos enrugadas pela umidade, dilaceradas, a pele gretada, queimada pela acidez da fermentação, continua a inusitada busca: investe contra os montes, desmancha-os, espalha a merda ao vento, com furor. Ora, a merda se esfarela, se transforma em pó entre suas mãos. As sombras se alongam e escurecem o pátio.
Agora, nem mesmo a noite o detém. Com os braços erguidos e a cabeça derrubada sobre o peito, repete desvairado:
– O tempo, o tempo… ”
Rio de Janeiro, 26 de junho de 1959
“[…] A busca do tempo perdido é um flagelo que não nos deixa nunca, brinquedos que somos de um destino malicioso e trágico.
Iberê Camargo marcou essa impossibilidade em todos os registros de sua obra, mas é sem dúvida em um de seus escritos, ‘O relógio’, que essa busca tão impossível quanto necessária exprimiu-se da maneira mais grotesca e desesperada. Savino, o protagonista do conto, perdeu seu relógio que caíra nos excrementos que enchiam as latrinas:
Ao descer do banco segurando as calças que lhe escorregam pernas abaixo – procura não pisar nas sujeiras espalhadas pelo chão – ouve um baque abafado dentro da fossa. Volta-se e vê, através do buraco do assento, seu relógio desaparecer, lentamente, numa imundice espessa, escura, variegada de amarelo-laranja.
– Oh! Meu relógio exclama Savino, contrafeito.
Aquele relógio antigo de prata cinzelada é a única herança que recebeu de sua avó. Não pode perdê-lo. Por isto, decide reavê-lo a qualquer custo.
A sequência do texto será tão bouffonne quanto trágica. Os seres e os elementos unem-se contra Savino que se esgota. Dia e noite, mergulhando todo seu corpo nas imundices, ele retoma incessantemente a tarefa, esgotando sua alma. Finalmente, a busca na fossa horripilante das latrinas da história só trará à superfície restos desarticulados do relógio, testemunha do ‘tempo perdido’.
E termina-se o conto:
Com os braços erguidos e a cabeça derrubada sobre o peito, [Savino] repete desvairado:
– O tempo, o tempo…
Como Savino, o pintor e o escritor tentam impedir a fuga do tempo perdido esforçando-se para recuperar os elementos dispersos. Nesse esforço contra a marcha inexorável do tempo, a construção da memória tem o papel principal:
Na memória, o antigo permanece. No passar vertiginoso do tempo, o instante quer ficar. O pintor é o mágico que imobiliza o tempo.”
LEENHARDT, Jacques. Iberê Camargo: os meandros da memória. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2010. p. 37-38. (Observar notas na fonte).
“Costuma-se citar […] um conto escrito por Iberê em 1959, mas publicado apenas em 1988: ‘O relógio’. Nele, o protagonista fuça obsessivamente entre os dejetos de uma latrina, para reencontrar o relógio que caiu acidentalmente nela. Recupera assim, além de fragmentos do relógio, objetos do passado: trapos, brinquedos. Mas, aos poucos, é a própria substância fecal que o seduz, o ato de esmiuçá-la indefinidamente, resmungando as palavras: ‘O tempo, o tempo…’. Não há quem não veja, nessa fábula, uma analogia com a pesquisa artística do autor, quase uma declaração de poética.”
MAMMÍ, Lorenzo. Iberê Camargo: as horas [o tempo como motivo]. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2014. p. 12. (Observar notas na fonte).
“O leitor […] terá, neste conjunto de nove contos, um novo aspecto da sensibilidade de Iberê Camargo. […] Se, como diz Iberê, vida e arte não se separam, sem dúvida os contos que agora temos neste volume iluminarão partes da vida e da pintura deste artista excepcional, responsável, entre outros, pelo surgimento do Atelier Livre de Porto Alegre, escola livre que formou alguns de nossos mais importantes artistas plásticos a partir da década de 60, fato que ele, humildemente, não revela no seu depoimento, ou preferiu esquecer, mas que lhe devemos, de qualquer maneira.”
Antonio Hohlfeldt, na apresentação do livro No andar do tempo: 9 contos e um esboço autobiográfico, 1988