Maria Angela Magalhães em seu ateliê Artesanato Guanabara, déc.1970

Acervo Documental Fundação Iberê. Doação Família Almeida Magalhães Hermeto, no contexto da exposição Iberê Camargo – O Fio de Ariadne, 2020

Tombo F7412

“Iberê Camargo, gaúcho de Restinga Seca – o maior pintor brasileiro vivo – é uma pessoa comprometida até as últimas conseqüências com a sua verdade. Vive de escolhas nítidas – nunca se viu Iberê em posições dúbias, buscando agradar ao que não lhe é agradável. De outro lado, não há dúvida na opinião que se tem a respeito dele e de sua obra: é amar ou rejeitar. Porque, fiel a si mesmo, na vida e na arte, uma e outra têm a marca indelével de seu caráter.
Uma noite, nos anos 70, atendi a um telefonema, em que ele ia direto ao assunto. Vira uma exposição de tapeçarias na Galeria Grupo B, ao lado do seu ateliê, e pensava em fazer a experiência. Gostaria de mostrar-me um desenho erótico que havia feito. Tenho que ver disse eu – embora seduzida pela idéia de trabalhar com ele, estava assustada com o tema. Imagine a possibilidade do grotesco! A tapeçaria era, para mim, uma versão do cartão outra forma de ver a mesma coisa. Em épocas distintas, artistas como Goya, Corot, Calder, Chagall, aventuraram-se nela. Mas, tapeçaria erótica?
No dia seguinte, à noite, estava em sua casa, levada por amigos comuns. A sala de um pequeno apartamento, em Botafogo, era possuída por três enormes telas parecendo ocupar mais espaço do que nós, as pessoas que ali estávamos, vivas, nos mexendo, falando, sem contudo ter a metade da intensidade delas. Iberê nos mostrou uma série de desenhos e, finalmente, o que escolhera. O assunto era forte, mas tratado com talento. Eu fiz a tapeçaria.
Neste tempo, assisti, diversas vezes, ao Iberê no exercício mental, emocional e físico de criar: a concentração, a tensão, a energia, a entrega ao que ia surgindo na tela. O não correspondente ao que queria e precisava, era apagado, sem pena. A tarefa era de muita procura – garimpeiro de si mesmo, ele não fazia por menos: buscava diamantes.
Certa vez, uma noite em que Mário Carneiro filmava um curta metragem sobre sua obra no ateliê de Porto Alegre, ele fez e desfez por dezessete vezes o mesmo quadro. Às seis horas da manhã – exauridos todos – teve a tela arrancada do cavalete e pendurada em uma parede, por Maria, sua mulher. Acordando, lá pelas dez horas, voltou ele ao ateliê e, de novo, desmanchou grande parte do trabalho. E nunca mais pôde recomeçá-lo. A modelo convocada à pose adoecera, doença séria, na cama por mais de um mês. Por aí, o desejo já o havia deixado. Ás dezessete versões do quadro só existem no filme de Mário.
Tais rigor e exigência que fazem de Iberê um pintor especial, vivi ao fazer as tapeçarias. Tirar do concretíssimo da lã a cor impossível, inventada no exercício da liberdade do artista da certeza de que aquela, e nenhuma outra mais, seria a necessária para aquele espaço. O buraco de uma agulha é o símbolo da dificuldade, do limite, que separa o que pode, do que, o que nunca poderá. E, por ele, deveríamos passar mil fios, tantos quantos necessários à idéia da cor. Eram fios divididos de lã pura, misturados à seda, ao algodão, às texturas rústicas, às mais delicadas e finas linhas de bordar. Sem preconceito, buscando a composição da cor, já que, no que fazíamos, a cor era o principal desafio. Porque, no Iberê, o óbvio não existe – como também não existia lugar algum no qual achar a cor, a não ser dentro de nós mesmos.
A tarefa determinada para uma semana da bordadeira, me custava três ou quatro horas de trabalho – nas quais afiava a percepção e conseguia marcar uma área de um palmo ou pouco mais. E, aquele pouco, demorara toda a semana a ser tecido – após separar e distinguir os fios, acertar o ponto pedido, obedecer ao limite sutil das cores. Cada tapeçaria gastou, em média, seis meses de trabalho. Sou muito grata às mulheres que bordavam – todas com extrema paciência e responsabilidade e que, mesmo sem atinarem o porquê de tantos fios, não se furtavam a obedecer ao que era pedido. E, às vezes, ainda ouviam: “meu Deus, não era bem isto – por favor, desmanche”. A tapeçaria pronta ia para a parede. O primeiro momento era de humilhação – como me atrevera a traduzir um Iberê ? As transparências, os traços vigorosos – aquele grafismo nervoso – criando relação essencial entre um elemento e outro, como um diálogo, busca de equilíbrio e autenticidade.
A depressão só passava quando ele, com o seu cartão na mão, examinava atentamente os resultados. Às vezes pedia mais um pouco de luz neste ponto – às vezes queria um tom mais alto ou mais baixo nesta cor outras vezes me perguntava, curioso: “Tiveste de usar este fio?” E eu explicava a dificuldade, a insatisfação que me possuía, e como, dentro de mim, chegara à conclusão de que aquilo era necessário. E ele: “Está bem, acabe!”
A atitude de Iberê conosco sempre me surpreendeu – pela entrega, confiança e respeito, fazendo com que ele, dono absoluto de suas coisas, fizesse parte, de nossa equipe – numa cumplicidade, sem discriminação pelo papel de cada um.
Uma tapeçaria possui urdidura ou tela, onde a trama se desenvolve – como a tela do pintor recebe a tinta, ela recebe os fios. É nesta superfície que, pincelada a tinta ou tecidos os fios, buscamos o ponto certo. De alguma forma, penso que, no caso, chegamos lá. As tapeçarias de Iberê Camargo foram expostas e vendidas – no Rio, na Galeria Bonino e, em Porto Alegre, na Galeria Tina Presser. A nossa única frustração foi a de não ter alguma em espaço público, para ser vista por quantos passassem e apreciassem um momento de emoção.”
MAGALHÃES, Maria Angela de Almeida. Iberê e a tapeçaria. Estudos Avançados, [S. l.], v. 7, n. 17, p. 203-211, 1993. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/9617>. Acesso em: 21 maio. 2021.

“O desvendar do mistério – Iberê começou, para mim, quando ousei, a partir de seus cartões, fazer tapeçarias. Percorri o caminho do seu gesto, percebi o requinte das transparências, o vigor dos grafismos, a invenção das cores. Dessa época, guardo uma delicada impressão de muito respeito.
Vejo-o na humana convivência com as bordadeiras, vejo-o na plena atenção, cartão em punho, a acompanhar as soluções dadas. Responsável único pelo destino de tudo o que faz, a aceitar o trabalho de equipe e a assumi-lo, conosco.
Há uma condição comum às amizades do Iberê. É a de uma amorosa relação que se estabelece a partir do entendimento da pessoa do Iberê, admiração incondicional pelo artista e carinho pelo ser humano. Porque não é fácil ser Iberê Camargo. A construção de uma pessoa é tarefa de fidelidade de uma vida toda. Iberê se constrói com rigor e intensidade. E é, certamente, a representação viva das figuras fortes e suaves, de dramáticos contrastes, que ele mesmo pinta.
Como no seu trabalho, ele não faz a si mesmo concessão alguma. Nada nele é leviano ou supérfluo. Ele é a pura expressão de uma verdade interior, a vivência da paixão que tem pela vida. Exerce a sua gentileza, que não é a das convenções sociais, e é generoso ou rude, correspondendo ao que, espontaneamente, sente. É nesse compromisso com o próprio ser que está a chave da compreensão do seu caráter. Quem for capaz de entender, estará cativo para sempre.”
MAGALHÃES, Maria Angela de Almeida. In: BERG, Evelyn. Iberê Camargo: coleção contemporânea 1. FUNARTE, Instituto Nacional de Artes Plásticas/ Museu de Arte do Rio Grande do Sul: Rio de Janeiro, 1985. p. 47. (Depoimento).

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