Doze anos da primeira exposição “Iberê Camargo: moderno no limite 1914-1994”

18.maio.20

Para celebrar o Dia Nacional dos Museus, comemorado em 18 de maio, a Fundação Iberê relembra a exposição de inauguração do centro cultural “Iberê Camargo: moderno no limite 1914-1994” reuniu mais de 50 pinturas, 20 gravuras e 10 desenhos do acervo e de coleções privadas. A cerimônia de abertura, realizada no dia 31 de maio de 2008, recebeu mais de 2,5 mil convidados, entre eles Alvaro Siza, o arquiteto português que assina a obra do prédio da Fundação.

Com curadoria de Mônica Zielinsky, Paulo Sergio Duarte e Sônia Salztein, a retrospectiva apresentou obras de Iberê produzidas entre os anos de 1940 e 1990, bem como focalizar alguns de seus momentos cruciais, que atestam o vigor e a contundência com que o pintor respondeu às grandes viravoltas culturais do século XX: sua perplexidade em face do desastre ético e moral que significara a Segunda Grande Guerra; seu ceticismo perante um vertiginoso progresso tecnológico; a pergunta, posta sem trégua por sua obra, sobre a excepcionalidade da experiência da arte em uma sociedade cujos rumos se viam cada vez mais marcados por uma hegemônica cultura de massa.

À época escreveu Duarte:

“A meu ver, esta exposição se reveste de tripla importância. Antes de tudo é a primeira retrospectiva de Iberê Camargo no Rio Grande do Sul, o Estado onde nasceu e para onde retornou para concluir sua obra. O visitante está diante de um dos pontos culminantes da arte no Brasil do século XX.

Se o artista é o trabalhador que busca, em qualquer circunstância, através do exercício da liberdade no uso de seus meios, a excelência de um resultado que se traduz na consciência histórica da cultura que experimenta no grau mais elevado de condensação, poucos, no seu tempo, traduziram em sua obra essa condição como Iberê Camargo. Desde as primeiras paisagens, passando pelos magistrais carretéis até o aparecimento da figura humana, a obra é atormentada pelo drama da busca de uma verdade que jamais poderá ser contemplada passivamente. Esse apelo ao outro, a que se movimente no mesmo sentido depositado em cada pincelada, até o abraço sensorial no quadro inteiro, é um traço comum a todo seu trabalho. Se a história da arte tem na pintura a óleo de Iberê um dos momentos de sua exaltação – na qual, é óbvio, estamos bem além de questões meramente técnicas –, suas gravuras não ficam atrás: junto com as de Lasar Segall e as de Oswaldo Goeldi, formam a tríade incontornável da questão expressiva no Brasil.

A busca incessante da instabilidade do mundo e da existência, aliada à rara potência poética, está na base desse movimento que somos chamados a conhecer. Sim, porque se trata exatamente disso, o encontro com um conhecimento que só se entrega pela repetição da experiência da obra. Aproximemo-nos de um dos carretéis. A obra ganha corpo; a pintura é literalmente esculpida em gestos que encerram, para nossa surpresa, suprema destreza e violência simbólica, selvagem, no modo como manipula formas e cores. Seus modelos – os carretéis, brinquedos da infância pobre do filho de ferroviário – serão, logo depois das primeiras experiências de repouso sobre a mesa, deformados, esmagados. Perdem a “naturalidade” para se tornarem massa de tinta na construção de um espaço moderno, plano e, paradoxalmente, profundo, cujos contrastes necessitam do massacre da forma dos entes originais que repousam diante dos olhos no ateliê. Um olhar mais atento descobre uma discreta ordem no caos aparente; o mundo se deforma para se reordenar e parece ser esse o momento capturado nos carretéis: não o instante em que as coisas desabam, mas o instante em que sua energia se concentra para se erguerem e se constituírem, se instaurarem como forma e sentido na pintura, em cada tela.

Aquele que se detiver nas obras de cada sala não será apenas testemunha de um capítulo maior da arte moderna no Brasil, mas terá uma experiência estética única constituída pelos melhores valores de nosso tempo.

O segundo aspecto importante é que a exposição encerra um cuidadoso processo de trabalho da primeira etapa de vida da Fundação Iberê Camargo. Processo raro em nosso país: uma instituição de direito privado, constituída por meio de sucessivas consultas a especialistas até formar o Conselho de Curadores, que, durante esse período, iniciado logo depois da morte de Iberê, em 1994, não cessou, graças a uma pequena e dedicada equipe de técnicos e administradores, de agir publicamente através de exposições de diferentes portes, seminários internacionais, trabalho educativo e da construção de um acervo de gravuras de artistas contemporâneos gerado nas atividades do ateliê de Iberê, dirigido por seu assistente, o artista Eduardo Haesbaert. Esse momento da Fundação Iberê Camargo foi marcado, simultaneamente, pela pesquisa e pela catalogação da obra, num trabalho exemplar, dirigido por Mônica Zielinsky, cujos primeiros resultados se materializam na publicação do Catálogo raisonné – Vol. 1 / Gravuras, instrumento indispensável ao pesquisador, estudioso ou colecionador. Todo esse trabalho pode ser acompanhado no site da instituição.É a parte invisível nesta exposição, mas que constitui sua coluna vertebral: uma atenção especial à institucionalização com método.

Em terceiro lugar, a exposição, ao mesmo tempo em que encerra uma etapa, inicia novo estágio num patamar evidentemente superior com a inauguração de nova sede no edifício projetado por Álvaro Siza Vieira. Surgem novas responsabilidades. O projeto, premiado com o Leão de Ouro na Bienal de Arquitetura de Veneza de 2002, teve seu desenvolvimento cuidadosamente acompanhado pelo autor e executado sob o olhar atento do Engenheiro Canal.

O edifício é um marco arquitetônico de volumetria monumental e se destaca às margens do Guaíba contra o verde da encosta. Foi construído em concreto branco, tem brita de mármore, e os ferros de sua estrutura galvanizados para evitar que a corrosão interna maculasse a superfície alva. Funcional, suas salas convidam à apreciação da obra de arte, sem a interferência da paisagem que pode ser contemplada do exterior. Os espaços de exposição respiram e entram em contato uns com os outros pelo franco vão interno. Sua circulação, que se lança como vértebras externas ao corpo principal, além de compor escultoricamente o volume edificado, facilita o visitante num percurso ideal que começa no último andar e termina no térreo. O prédio é contemplado por toda a infraestrutura necessária à conservação do acervo, espaços e equipamentos dedicados às atividades paralelas de pesquisa, educação e lazer, sem esquecer, em seu programa, da importante atividade do ateliê esculturas e instalações, in sito, de artistas contemporâneos.

Fui testemunha, nos últimos dez anos, primeiro como consultor, depois como membro do Conselho de Curadores, da discreta e importante dedicação de quatro pessoas que tornaram realidade a nova etapa da Fundação Iberê Camargo. Antes de todos, Maria Coussirat Camargo, a grande companheira de toda a vida do artista, que, com sua generosidade e obstinação, tornou possível o empreendimento. A vontade de Jorge Gerdau Johannpeter que, desde o primeiro momento, deu todo o apoio para viabilizar o que poderia não passar de um sonho. A preocupação e as intervenções pontuais de Carlos Zilio, discípulo e amigo do artista, que, mesmo no Rio de Janeiro, acompanhou cada passo da instituição. Por último, mas não menos importante, a dedicada, desinteressada e minuciosa atenção cotidiana de Justo Werlang, sempre presente em todos os momentos desse processo.

Foi com uma ponta de orgulho que – como crítico e cidadão – testemunhei esse capítulo da história da arte no Brasil na companhia de Sônia Salzstein e Mônica Zielinsky, amigas e colegas na curadoria”.

Mais informações sobre a retrospectiva “Iberê Camargo: moderno no limite 1914-1994”, clique aqui: