Entrevista com Elaine Tedesco

17.ago.18

A primeira participante do Programa Artista Convidado do Ateliê de Gravura na sede da Fundação Iberê Camargo, na Av. Padre Cacique, foi a artista Elaine Tedesco. Em 2008, a artista trabalhou no Ateliê, utilizando a prensa que pertenceu a Iberê, e conversou com o público no auditório da Fundação.

Elaine vive e trabalha em Porto Alegre (RS). Sua formação em artes plásticas foi realizada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde também cursou o mestrado. Participa de exposições coletivas desde 1987 e já realizou diversas individuais. Entre as suas principais mostras recentes estão as participações na Bienal de Veneza, em 2007; 5ª Bienal do Mercosul, em 2005; Conexões Tecnológicas; e a individual Guaritas, na Galeria Leme em São Paulo, em 2005. Saiba mais sobre a trajetória da artista na entrevista abaixo.

Como foi o início da tua carreira? Tu és aqui de Porto Alegre?
Sou de Porto Alegre. Quero contar por que eu entrei no Instituto de Artes (IA/UFRGS) e como me formei em desenho. Acho que isto tem um sentido. Antes fui fazer publicidade, porque queria fazer fotografia. E lá no meio do curso, descobri que a disciplina de fotografia era completamente voltada para o jornalismo. Eu já sabia de muita coisa que tinha acontecido com a fotografia nas artes visuais e vi que estava no lugar errado. Decidi, então, fazer o vestibular para Artes pensando que, no IA, eu teria disciplinas que tratassem da fotografia de uma maneira mais interessante, menos direta, menos como tentativa de registrar a realidade. Cheguei lá e não foi bem isto que aconteceu. Os professores da época trabalhavam com um viés muito parecido com o da comunicação. E aí, fiquei pensando no que é que eu poderia fazer? Já havia trocado de curso uma vez, e ao menos tinha uma coisa que eu entendia: eu estava no curso certo. Acabei escolhendo me formar em desenho porque um dos professores orientadores era o Carlos Pasquetti. Não foi pela ênfase, escolhi o professor que eu queria que fosse meu orientador.

E aí tu chegaste a ter um trabalho em desenho?
Sim, trabalhei com desenho de 86 a 90.

Qual era a temática destes desenhos?
Os desenhos eram todos abstratos, tratando o papel como matéria, algo bem dos anos 80. Desenhava com técnica mista, usava muito grafite, betume, várias coisas que vinham da gravura. Eu também fiz litografia no Ateliê Livre durante um tempo. Lá aprendi algumas técnicas que transportei para o desenho sobre papel. Eram trabalhos gestuais, muito carregados de marcas e com formas simples: esferas ou outros emaranhados, figuras que poderiam pertencer a qualquer época. Havia a idéia de um desenho que não precisasse de tradução, que não fosse necessariamente de uma única cultura.

Quando o desenho criou corpo e transformou-se em instalação?
Em 1986, eu fiz cursos rápidos com dois artistas convidados pelo Departamento de Artes Visuais que foram muito significativos. Um curso de performance com o Guto Lacaz e outro de escultura com a Iole de Freitas. Através do workshop com ela, eu fiz essa transposição do desenho, do gesto, do tipo de gesto que eu fazia sobre o papel, que era a idéia de um emaranhado, de uma amarração, para a terceira dimensão. E foi muito fluido, porque o trabalho da Iole já tinha essa relação com a linha também. Foi assim que eu passei de uma coisa para a outra, trazendo a linha para o espaço. Eu pensava as primeiras peças que fazia não como esculturas, mas como um gesto com linha estendida no espaço.

Esses primeiros trabalhos tridimensionais têm a ver com o Dois Nós Dois, da série Aparatos para o Sono de 1997?
Primeiramente, eu usei alguns tipos de metal, mas principalmente o cobre, para fazer os emaranhados. Depois comecei a trabalhar um pouco com a espuma. Foi esta a passagem, mas até chegar aos Aparatos para o sono demorou um tempo. Fiquei quatro anos ainda fazendo desenhos e trabalhos com espuma e fios de cobre. A mudança aconteceu em 1990, quando fui morar em São Paulo. Fiquei quase um ano lá e decidi, por minha conta, começar a freqüentar a biblioteca da USP, a ler e atualizar minha formação. Como os Aparatos para o sono surgiram é uma história biográfica: tive um período de insônia e numa dessas noites eu pensei: “Ah, chega de não dormir, vou fazer alguma coisa com isso”. Aí pensei neste título, os Aparatos para o Sono, ou seja, uma série de coisas que eu precisaria para dormir. Comecei a criar os objetos com tecido. Em São Paulo, fiz só uns protótipos, achando fios de cobre na rua, comprando tecido, usando espuma.

Eu gostaria de conversar contigo sobre memória. Os teus trabalhos dos anos 90, como a Cabine para Isolamento, em que a escada tem como origem a escada da casa de praia da tua família, de certa forma remete a isso. Mais recentemente, tu fotografas casas, que são patrimônio histórico, como a série feita em Pelotas, e elas também sugerem memória. A fotografia em geral também é um registro que gera memória. Como é essa questão para ti?
Eu nunca penso diretamente sobre isso quando estou fazendo meus estudos. No geral, não escrevo sobre a memória. Mas é inevitável. Talvez seja uma memória geral, uma memória do tempo, independente de ser a minha memória. É um registro do que estou vivendo, mas focalizando uma situação que é coletiva. Quando trabalhei com a escada, não é porque era a casa da minha família. Eu sabia que esta escada se repetia em várias outras casas, algo que era de uma determinada época, da construção dos anos 50: uma escada e um espaço embaixo da escada que é um armário. Não acho que o meu trabalho seja autobiográfico neste sentido. Mas se uso a fotografia, não tem como não tratar da memória. Tens toda razão.

Em um texto teu, tu dizes que fotografa e guarda as imagens e não as usa de imediato. Nisto de novo vem a questão do tempo e da memória: ver, registrar, depois resgatar e trazer de novo.
Sim, e demora muito tempo às vezes.

Mas é um procedimento mesmo, inevitavelmente?
É. É muito raro eu fotografar e já mostrar o que recém fotografei. No geral, eu fotografo e acabo arquivando. O arquivar, para mim, é também selecionar e editar. Há muitas imagens que eu simplesmente guardo, vejo a primeira vez, não gosto, e elas ficam guardadas. Mas tem uma outra situação que é selecionar, editar o material e separar o que vou arquivar. Tenho arquivos que se chamam “Paisagens para quê”, “Ruínas para projeções”, “Lugares”… Tenho uma série de arquivos assim. Agora estou trabalhando um pouco com o digital, mas as imagens estão paradas, não sei ainda o que vou fazer com elas.

Como começou o teu trabalho com a projeção? Como ele passou para as sobreposições?
Começou na exposição Documentos de Trabalho, em 2001. O Flávio Gonçalves organizou a curadoria. Eu mostrei uma projeção de um slide, com a imagem da escada na beira da lagoa, sobre uma espuma com duas madeiras ao lado. Ou seja, uma imagem foi projetada sobre uma superfície que tem uma textura, num espaço interno. Aquele foi um trabalho muito rápido, mas foi a partir dali que fiquei com vontade de usar a projeção. Quando a Lena [Maria Helena Bernardes] e o André [Severo] me convidaram para participar do Projeto Areal, pensei no que poderia levar para as viagens pela região Sul do estado. Eu tinha o projetor de slides, e aí pensei em desenvolver uma série de imagens com dupla exposição. Esse foi o começo. Então, em Mostardas experimentei projetar as imagens sobre diferentes arquiteturas, aleatoriamente. E, nesse exercício de projeção, percebi que algumas imagens se misturavam ao lugar ou agregavam um outro sentido ao lugar. Gostei e fiquei com vontade de experimentar isto de uma maneira mais dirigida, porque ali tinha sido um exercício de dois dias na primeira vez, e depois mais dois no outro mês. Eu sabia que uma parede branca não serviria. Queria, de uma certa maneira, que a arquitetura interferisse na imagem. Quando a parede não é lisa sempre acontece uma interferência, mas nem sempre a imagem e a arquitetura acabam se transformando temporariamente em outra coisa. E isso foi o que eu comecei a buscar, uma fusão, que tem exatamente a ver com o efeito de vídeo: uma coisa que acontece ali, ao vivo, em que se pode ter uma fusão das coisas.

E, então, o registro disso vira outro trabalho?
É, mas na primeira vez, em Mostardas, isso não aconteceu. Eu fiz muitas fotos das projeções, mas, inicialmente, nem pensei que tais registros poderiam se tornar outro trabalho. Só na terceira viagem, já em Rio Pardo, resolvi levar uma câmera de formato maior, pensando que a documentação poderia mesmo vir a ser um bom material e quem sabe outro trabalho. Duas dessas fotografias realmente passaram a ter uma edição de 3 cópias e uma p/a. Vale lembrar que nem sempre as fotografias que registram as projeções se desdobram num outro trabalho.

Quando tu trabalhas com as Guaritas, de certa maneira estás trabalhando com um elemento que observa a cidade. Como é que é a tua relação com o espaço urbano? O que é que te interessa na cidade?
Tudo. A cidade me interessa como um todo, dentro da idéia do que é o urbanismo, das estruturas em transformação, mas não é apenas a cidade, é a idéia de um espaço habitável, seja urbano ou rural. Nos meus arquivos existem muitas fotografias de paisagens, entre 2000- 2002 eu montei duas instalações com algumas dessas imagens, eram fotografias de tempestades. Desde então tem sido recorrente, no processo de criação, levar algum objeto que confeccionei, para a paisagem a fim de fotografá-lo. Foi o que fiz com uma das escadas, criada para a II Bienal de Artes do Mercosul, e que em 2000, levei para a beira da Lagoa dos Patos, em Arambaré, para fotografar. E, apenas agora, estou trabalhando com essas imagens em projeções. Atualmente eu caminho menos por Porto Alegre, mas há tantos anos vivendo neste mesmo lugar, acabei construindo o meu próprio mapa e comecei a perceber certas peculiaridades nas mudanças desta cidade e as guaritas são algumas delas.
Sobre as guaritas, eu comecei a me dar conta deste tipo de casinha em 96. Essas construções não estavam aqui quando eu cresci, eram raríssimas. As guaritas que existiam nos anos 70 eram guaritas militares ou guaritas em bancos ou prédios abastados. Não havia guaritas na rua. Acho muito estranho essas casinhas nas esquinas, e não é por eu as ter fotografado que esse estranhamento tenha se esgotado. Esse tipo de construção que está num lugar onde não pode estar, porque não faz parte do plano diretor, mas é acolhido pela prefeitura, aponta para uma brecha na organização dos aparatos urbanos. Eu acredito que as guaritas são também, de uma certa maneira, um retrato da decadência das cidades.
Em uma abordagem ficcional sobre meu trabalho, recentemente, inventei que as guaritas eram uma espécie de Aparatos para o sono. Porque sua presença significa que enquanto alguém está acordado, vigilante, podemos dormir tranqüilamente. Não é um aparato para o sono que criei, mas um aparato para o sono que muitas comunidades acabam providenciando para poderem dormir sem medo.

Tu não abandonaste as guaritas ainda? Elas estão aqui no trabalho que tu estás fazendo Ateliê de Gravura.
O que está no Ateliê de Gravura é o resultado do que eu fiz ainda no ano passado. Estava expondo algumas fotografias da série Guaritas na Bienal de Veneza, e como não tinha exatamente um ateliê, comprei um bloco e fiz alguns desenhos pensando em fazer uma gravura. Então não é que vá continuar. Na verdade, estou querendo dar tchau para as guaritas, porque é um trabalho que já está acontecendo há dez anos.

E o que tu estás olhando agora?
Estou resgatando coisas. Não estou olhando para fora, estou olhando para os meus arquivos de imagens. Encontrei umas fotografias de 86, que achei interessantes, pensei “O que estou procurando lá fora? Tem tanta coisa que eu já fotografei”. Então, estou muito interessada no meu próprio arquivo, e – aí tens toda a razão – numa memória. É verdade, eu que não tinha percebido. Estou mexendo numa memória pessoal, até porque ela já está afastada do momento. Estou criando situações com mais de uma imagem, ou com uma imagem só, no meu jardim, projetando estas imagens nas folhagens, nos recantos. Isto tem a ver com a projeção numa árvore que eu fiz em Belém (PA), em 2005. Achei muito interessante a imagem se movimentar. No registro não aparece, mas na hora é incrível, porque tem movimento, a imagem se desloca, não se fixa. É muito mais para vídeo do que para fotografia. Mas, ao mesmo tempo, o registro em vídeo é horrível. Eu já tentei várias vezes e fica muito ruim, então eu continuo registrando em fotografia. Gosto mais do que acontece ao vivo, quando as folhas ficam se mexendo, quando se percebe o relevo.

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Imagem: Elaine Tedesco trabalhando no Ateliê de Gravura da Fundação Iberê Camargo. Foto © Acervo Documental da Fundação Iberê Camargo