Daniel Frota: Sol Preto

Curadoria

Bernardo José de Souza

03.fev

08.abr.18

Realidade e ficção constituem esferas análogas quando se lança uma mirada crítica sobre a história ou mesmo sobre a ciência; funcionam como dimensões paralelas no processo semântico que nos permite produzir conhecimento a partir de informações trazidas à tona em contextos sociais e culturais tão específicos quanto diversos.

Distantes no espaço – e no tempo? –, as realidades europeia e sul-americana guardavam rarefeita correspondência quando em análise o debate científico e filosófico a orientar a humanidade diante das modernas noções de progresso em voga nos círculos eurocêntricos em princípios do século XX. A bem da verdade, as capitais “terceiro-mundistas” rezavam pela mesma cartilha cartesiana que as metrópoles europeias, embora a história fosse outra quando investigado o comportamento e o sistema de crenças das pequenas aglomerações urbanas do interior do continente latino-americano.

No ano de 1919, ao passo em que físicos e astrônomos europeus intentavam validar a Teoria da Relatividade postulada por Einstein, mediante a observação de um eclipse solar, o povo de Sobral – então uma cidadela a ocupar diminuta porção meridional do globo terrestre – ainda ruminava noções de pecado e punição sob o véu da Igreja e das crenças religiosas. Naquele contexto histórico de brutal apartamento científico e cultural, a luz como elemento-chave à comprovação da Relatividade haveria de produzir imensas zonas de sombra sobre a população do sertão brasileiro – uma terra castigada pela seca inclemente e pelo sol a pino, que alguns diriam turvar as ideias dos homens debaixo de tamanho e insuportável calor, enquanto outros, com maior lucidez, atribuiriam a “falta de luzes” daquele povo ao acachapante peso do obscurantismo religioso e da tutela das oligarquias agrárias que historicamente submeteram o país ao atraso econômico e cultural.

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Situado entre a pesquisa histórica, a investigação plástica e a especulação filosófica, o projeto Sol Preto, de Daniel Frota, se debruça sobre a façanha científica de astrônomos britânicos em terras tropicais, a qual resultou na validação do maior pulo do gato na história da física moderna, qual seja, a da unificação das noções de espaço-tempo. Mas o interesse do artista, para além das questões científicas específicas de tal teoria, reside na colisão de dois mundos em tese estanques, que acabou por resultar em um sem-fim de causos e anedotas reveladoras das perspectivas críticas – ou mesmo acríticas – de ambas civilizações.

À sua chegada à cidade, seguiram-se encontros do artista com personagens locais e algumas visitas a espaços referenciais à história do eclipse solar que fez o mundo de Sobral escurecer por uma fração curtíssima de tempo, relativizando assim não apenas as leis da física formuladas até então, mas toda a dinâmica política e cultural daquele povoado.

As superstições fomentadas pela imaginação dos nativos forjavam um cenário de tintas apocalípticas, as quais se viam adensadas pelo discurso da Igreja, via imprensa local: em vez de desfazer a mística em torno do eclipse e da expedição de astrônomos, optava por “traduzir” o discurso científico em textos “informativos” que, em alguma medida, acabavam por reiterar o fundamentalismo catolicista.

Esclarecedora em seu mutismo aparente, Sol Preto nos lança em uma viagem no tempo e no espaço, numa dimensão que corre em paralelo a essa que chamamos presente. Pontos em uma rede infinita de possíveis articulações sinalizam múltiplos “buracos da minhoca”, outra figura usada pela física para descrever as pontes que unem um espaço a outro, ou um buraco negro a um buraco branco. Enquanto margeamos o conhecimento sobre o universo, e sobre nossa própria história, aguardamos o fim dos tempos em épica expectativa, ou mesmo o eclipse que acabará nos cegando por completo ou, quem sabe, nos tornando clarividentes.

Bernardo José de Souza

 

Imagem: Vista parcial da exposição “Daniel Frota: Sol Preto”, que esteve em cartaz na Fundação Iberê Camargo de 03 de fevereiro a 08 de abril de 2018. Foto © Nilton Santolin

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