Iberê Camargo: caminhos de uma poética

Curadoria

Mônica Zielinsky

“Tenho sempre presente que a renovação é uma condição da vida. Nunca me satisfaz o que faço. Vejo nisso um estímulo permanente à criação. Ainda sou um homem a caminho.”
Iberê Camargo

Desvendar a arte de Iberê Camargo significa percorrer muitos dos mais fascinantes e complexos caminhos da descoberta. Suas obras aguardam o nosso olhar e propõem todo um mundo de expressão e de vontade, através de manchas e grafismos superpostos, cores e pinceladas veementes, mas dependem especialmente daquilo que nós desejamos ver. Por essa razão, essas obras passam a viver diferentemente em cada um de nós, com todas as nossas fantasias, sentimentos e conhecimentos. Contudo, não é em nosso mundo de imergimos: é no do artista; é a sua obra que nos convida a visitá-la. Nada nesse processo é estanque, ao contrário, estamos inseridos em um espaço de relações.

Pensando nessas, em todas as ricas facetas que envolvem a experiência de uma exposição de Iberê Camargo, delineamos uma aproximação à identidade da sua obra. Buscamos primeiro, com esse recorte, mesmo que deslocados no tempo, paradoxalmente sermos contemporâneos a ela. Isto quer dizer, apreender em profundidade, e através das marcas deixadas, o seu vivo processo de trabalho, as verdades e interrogações da sua elaboração. Essa nos permite ir muito além da simples contemplação das telas concluídas e desenhos acabados: ela nos possibilita vivenciar cada momento de seu processo, procurando acompanhar o que ele sentiu, compreender o que ele pensou, enfim, tentar refazer com ele, mas agora à maneira de cada um, estes caminhos – sempre de renovação como condição da vida, como ele mesmo sugeriu. Mas não é só: conhecer a obra de Iberê é também pensar a dimensão artística da sua obra em seus diversos ângulos, os que ultrapassam o sentido apenas individual – o significado dos momentos que ele escolheu entre a figuração e a abstração, o da técnica pastosa e o das obsessivas superposições de camadas de pintura, a potência sensível da cor, a escolha expressiva dos seus personagens, os limites da tela, entre tantos outros elementos, é procurar identificar a constituição simbólica a obra deste artista que a situou no contexto da pintura moderna brasileira.

Para isso, os esboços, em justaposição às obras concluídas, podem desvendar novos valores. Eles não apenas perfazem o caminho do artista até a obra, mas mostram-se eles mesmos, obras. Descobre-se, com surpresa, que inúmeros despretensiosos desenhos ao modo de rascunhos trazem uma forte busca de apreensão da vida. São como que o impacto dos instantes que se esvaem céleres no tempo. É como se o artista tentasse segurá-los no papel, em seu esforço para conhecer e plasmar a existência. Não escondia que trabalhava com paixão, com ímpeto, com emoção incontida, às pressas. Mas essa pressa ele encarnava em seu gesto ágil, em cada pincelada, em cada obra, como se indagasse obstinadamente o significado do tempo. Cada pequeno estudo, frequentemente repleto de sobreposições, acabava concluindo-se em uma obra maior. Era uma procura incessante para cercar o que via ou imaginava, um lugar onde as figuras ou formas entravam em questão entre os limites do suporte, tido muitas vezes como provisório. Não há nesses croquis nenhuma pretensa e esperada ordem no espaço, há sim, um ato inquieto e incansável de rasgar o definitivo, de tentar trazer a vida para dentro da arte.

“Para mim arte e vida confundem-se.” Repetindo as rápidas e incompletas personagens, multiplicadas sobre a superfície, ele faz-nos evocar, através delas, os primeiros desenhos da humanidade. Questiona-se assim, simultaneamente, o passado e o presente, a imprecisão e a definição, o provisório e o definitivo, a arte e a vida. Muitos podem ser os contrapontos por toda a sua obra que nos conduzem a tantas indagações. Pergunta-se, pois, que transformações apresentou Iberê Camargo em uma temática em particular e na sua arte em geral? De que modo os esboços, por exemplo sobre os seus ciclistas, acabam por se configurar em sua pintura? Como chegam eles a possuir uma densidade em si mesmos, independentemente dos grandes óleos que lhes são semelhantes? Haverá alguma diferença qualitativa entre os croquis e as obras concluídas? Ou melhor, o que faria a diferença de valor: a variação da técnica ou quem sabe seriam as categorias que o mundo artístico atribui a ela?

Considerando este questionamento possível, foram selecionados alguns dos mais importantes núcleos temáticos da obra de Iberê – os dos ciclistas, retratos e autorretratos, paisagens, carretéis, e suas grandes telas finais – que passam a ser revistos em seus desdobramentos através dos diversos esboços. Os croquis trazem o embrião de outros caminhos que talvez o artista nem tenha chegado a reconhecer. A multiplicidade de perspectivas para perceber as obras revela-se como ponto instigante para experienciar o trabalho do artista. A atenção a elas torna-se mais densa ao examinar de que modo Iberê fez as suas opções, desenvolveu os seus estudos até chegar a determinadas soluções. É sempre uma produção em movimento, como foi também o seu gesto, sempre dinâmico, sutil, ao mesmo tempo vigoroso. A ideia de transformação das suas obras vem a ser tão importante como é a de sua definição.

Por outro lado, a fértil produção do pintor traz consigo um outro veio poderoso: o contato com os ilimitados meandros técnicos das diferentes propostas. Em arte, declara o artista, “o importante é aprender a linguagem e formar um vocabulário. Dono desta língua, pouco importa que a fala seja o óleo, o metal ou a pedra.” Os óleos de Iberê são as obras mais conhecidas; por essa razão, propiciar a convivência dos diversos modos de tratar a matéria traz à tona aspectos que dizem respeito à própria natureza da sua arte. A interferência das pinceladas nervosas na tela, os rasgos da espátula firme, o desenho seguro na pedra, o lápis que corre solto pelas superfícies em papel, ou as aguadas em matizes tem um lugar fundamental para se perceber a obra do artista.

Diante da produção de Iberê Camargo é impossível deixar de vê-la como um dos momentos cruciais da pintura no Brasil. Ele soube mostrar, como ninguém, em sua ânsia de trazer o seu interior para além de si e também para além da sua arte, a sua visão trágica da vida, a sua revolta e o seu amor, o seu desprezo e o seu sarcasmo em relação ao mundo no qual viveu. Extrapolou o espaço pessoal e passou para a história da arte com seu intrincado processo e produto artísticos. Nascido na serena paisagem de Restinga Seca, ainda distanciada das ideias do expressionismo internacional, soube, sem buscar as falsas classificações, fazer a sua arte, sempre autêntica, voltada ao seu cotidiano e à sua verdade, sempre enriquecida de um conjunto de questões profundas que põem em xeque a natureza artificial da própria arte. Cabe a nós descobrir os passos da descoberta, respeitando fielmente o que as obras de Iberê esperam de nós, sem jamais esquecermos que, deixando-se de lado a ótica linear, sua arte encontra seu verdadeiro lugar, entre os inúmeros caminhos que ela mesma propõe.

Mônica Zielinsky

 

Exposição realizada na primeira sede da Fundação Iberê Camargo, no bairro Nonoai.

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