Iberê Camargo: um exercício do olhar
Curadoria
Flávio Gonçalves
A arte, como observado pelo artista suíço Paul Klee, não simplesmente reproduz o mundo visível. Verdadeira à sua vocação inquieta e investigativa, ela torna visível aquilo que se mantém oculto sob a camada das aparências, no conteúdo sensível dos seres e das coisas. Nesse contexto, existe algo que podemos chamar de real, que por vezes nos escapa, mas do qual nós – ironicamente – não podemos escapar.
O trabalho de Iberê Camargo é repleto de iconografias originárias de suas memórias da infância e da vida à sua volta. Ele era um observador atento do homem e das armadilhas por ele mesmo impostas. Em seus carretéis de madeira, nas ruas desertas e arborizadas, no passar de pessoas pelas ruas, nos ciclistas na Redenção ou na aparência vazia de manequins nas vitrines, ele era capaz de perceber a natureza trágica da existência humana refletida na impotência perante o passar do tempo e o peso do passado. Sua energia criativa era direcionada a este desafio ou à tentativa de expressar a singularidade de um determinado fato, a pureza por vezes crua de uma sensação, de um sentimento: “O pintor é o mágico que imobiliza o tempo”, dizia o artista, um mágico que eterniza as cenas de uma vida que continua mesmo sem seu mestre.
Um dia, Iberê redescobriu os carretéis de algodão, antigos conhecidos de suas brincadeiras durante a infância. Estes pequenos objetos de madeira se tornaram um dos principais elementos de seu trabalho na década de 1960. Ele os reviveu com um olhar criativo, buscando o encantamento que deu vida à sua infância – um “anseio obscuro permanente” que aproxima a memória da arte. Muitas pessoas já compararam a visão do artista à visão de uma criança que enxerga o mundo pela primeira vez, que não sabe os nomes das coisas, tendo apenas sua percepção e sensações. A prática do desenho é amplamente responsável pelo desenvolvimento desta forma de visão, que nos compele a reexaminar as coisas em sua estranheza fundamental.
Para Iberê, desenhar era um meio de testar sua maneira de enxergar o mundo. Um pintor por excelência, ele sempre utilizava a arte do desenho como uma forma de registrar suas ideias, de capturar cenas nas ruas e de aperfeiçoar projetos de pintura ou gravura. Enquanto desenhista, ele dominava todo o repertório acadêmico que, em sua época, fazia parte da formação de um artista: havia paisagens dissecadas com lápis ou pincel, além de figuras desenhadas com um olhar atento e aguçado.
Com o passar do tempo (parecendo o tempo ser o tema mais recorrente em sua obra), Iberê imprime às imagens um tratamento mais acelerado. Uma síntese de formas que parece apreender o modelo a partir de seu interior – mais uma lição tomada do desenho. As linhas em seus desenhos e guaches ficam cada vez mais imersas na imprimatura, que banha o papel com tons translúcidos: aqui, podemos vislumbrar a energia da pintura na fluidez sensual da matéria e da cor que começa a aparecer.
Flávio Gonçalves
Exposição realizada na primeira sede da Fundação Iberê Camargo, no bairro Nonoai.