Paulo Pasta – Para que serve uma pintura

02.mar

19.maio.24

O prédio na frente foi pintado: cinza escuro na área das janelas, creme perto da quina, rosa na base das sacadas, as venezianas de um creme mais amarelado, já parcialmente esvaecido. É, ao mesmo tempo, um edifício e uma imagem. Normalmente, porém, não olhamos a imagem, vemos apenas o edifício. Não pensamos nas cores, senão porque distinguem os objetos. Mas em qualquer momento, se tiver tempo e paciência, posso abstrair da concretude do objeto e olhar para ele como se fosse uma pintura. Perceber, por exemplo, que seus elementos se separam pelo contorno e se relacionam pela cor. Que suas cores têm uma história e uma valência afetiva e, por isso, talvez, colorimos as coisas – não tanto por distingui-las, quanto para nos apropriarmos delas. Que, finalmente, certa combinação de forma e cores é o que torna esse prédio um indivíduo.

Uma tela de TV ou de computador nunca será uma coisa, e tampouco as imagens que aparecem nela. Nunca elas poderão ser outra coisa daquilo que são. Um quadro sim, e se coloca (especialmente no caso de Pasta) exatamente nesse intervalo em que a coisa se torna imagem (o pigmento se torna cor; a tela, figura) e vice-versa. Uma espécie de pausa, uma síncope, em que nos desprendemos do mundo e testamos nossa liberdade em relação a ele.

Toda percepção tende, irresistivelmente, a se cristalizar em figuras ou esquemas. Mas há um momento imediatamente anterior a essa cristalização que não é uma coisa nem outra. Como o próprio Pasta diz, há o momento em que ela é “ruído de alguma coisa”. Não necessariamente de algo do passado, mas de certa espessura do presente, que faz com que o contexto seja, por um instante, suspendido e a percepção se mostre, por assim dizer, no estado puro. É o rasgo de luz embaixo da porta com que Proust inicia sua Busca do tempo perdido.

Para que serve uma pintura? Talvez apenas para tornar o mundo um pouco mais complicado. Pintar é como gerar o outro de si, outra personalidade e outro lugar. Toda pintura é um mundo, já dizia Baudelaire, repetindo Delacroix – um mundo relacionado ao nosso, podemos acrescentar, mas não o mesmo mundo.

Lorenzo Mammì

 

Imagem: Paulo Pasta. Anunciação amarela, 2015. Col. Andrea e José Olympio Pereira. Foto © Everton Ballardin

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