Retrato: um olhar além do tempo

Curadoria

Blanca Brites

Agora, com seu propósito de registro afastado, com sua figuração realista eliminada e com seu significado contido, a imagem humana retida na memória mantém seu mistério. Conceitualmente, produzir um retrato significa mostrar a imagem reconhecida de alguém, uma interpretação que hoje em dia é livre de todo e qualquer indício para identificação. Essa constante presença na arte é transformada no retrato e no autorretrato, que, embora retenham sua função mágica, se encontram associados, mesmo que não explicitamente, ao desejo de imortalidade.

Para Iberê Camargo, além da importância que eles venham a ter para a história da arte e da humanidade, o retrato e, principalmente, o autorretrato eram elementos de amparo e referência pessoal. Embora eles permeiem toda a sua obra, a concentração de autorretratos, especialmente em determinados momentos, mostra como o artista apreciava este recurso. No início, em sua juventude, isso serviu para afirmar seu poder expressivo, tanto em pinturas quanto em desenhos. Tal elemento estava vinculado à interpretação de sua imagem e modelos íntimos, apontando direções que já começavam a despontar na gestualidade de um desenho com fortes atributos. Mais tarde, embora não como ponto focal principal, sua imagem aparece integrada junto a signos abstratos de algumas pinturas, como uma síntese de seu espírito, tornando-se parte do arranjo visual e conceitual da obra. É neste momento que o retrato se torna um amparo face à solidão que era apresentada como a condição humana desconsolada.

Na obra de Iberê, o autorretrato não fica saturado com a essência de Narciso. Pelo contrário; ao ver-se como o detentor de um outro ‘eu’, ele se coloca em constante oposição a este outro, tentando dominar o terror do outro em vez de projetar sua beleza. Esta situação é abordada em uma história na qual ele descreve sua reação ao ver seu rosto refletido na janela de um ônibus em que viajava: “vejo surpreso, e logo com crescente espanto, minha imagem refletida no retrovisor… a ideia do indivíduo de ser dois apavora… falta-me coragem para ver o outro que vive fora de mim”. Talvez pintar retratos seus significasse viver numa incessante busca por este outro que nos acompanha, que habita em nós. Se o autorretrato contém um segredo para o espectador, esta é a visão que o artista tem de si próprio e, por vezes, esta mesma revelação ocorre para o próprio artista e ele acaba enxergando um outro eu. Um eu desconhecido, no qual ele não se reconhece e que age independentemente de sua própria vontade. É quando o “homem se depara consigo mesmo, se questiona e não sabe quem ele é”. Um eterno examinador da vida, Iberê buscava revelar, ou ao menos pressagiar como leis invisíveis podem por vezes fazer com que a vida pareça uma dança de marionetes, onde somos impulsionados por desejos provenientes do nosso outro eu, de nosso duplo.

Em suas espirituosas composições, Iberê também agitava os arquivos da memória da mesma maneira com a qual manuseava seu pincel, com o qual ele reacendia imagens que o tempo não apaga, somente intensifica. Embora não haja uma relação específica entre as duas formas, a constante e similar busca autorreferencial pelo enigma da vida pode ser vista. Na prática da escrita, assim como na pintura, fica evidente a tentativa de recapturar lugares e momentos de diversão da infância. Eles são mostrados em cenas que permaneceram junto a ele e, como numa tentativa de purificação, se tornam algo quase persecutório, visto que “a maior tortura é que não se pode corrigir o que foi executado no passado”. Não é possível corrigir o tempo. A isso são acrescentadas camadas e mais camadas de outras memórias, outros momentos que, para Iberê, somente tornavam a vida ainda mais dolorosa. É essa consciência e desejo de agarrar-se à essência fugaz do tempo que são revelados, embora nem sempre de maneira decifrável, nos confrontos de cores, linhas e gestos visíveis. No contexto da arte brasileira, Iberê Camargo é reconhecido pela liberdade e firmeza que guiaram as mudanças radicais em suas obras, mantendo, apesar disso, sua identidade. O domínio da arte do desenho permitiu que ele trilhasse diversos caminhos em termos de figuração e abstração expressiva. O seu ajustamento de cores, além das densas camadas de tinta, era executado de acordo com a gestualidade essencial do momento.

O objetivo de montar a exposição em ordem cronológica é possibilitar, mesmo que parcialmente, acompanhar as “rotas” de Iberê Camargo em seu processo de trabalho. Suas palavras tinham o objetivo de esclarecer seu posicionamento com relação ao seu trabalho e seu processo. O retrato e o autorretrato também eram associados a algumas contradições reais inerentes ao espírito de Iberê, que dizia o seguinte a si mesmo: “Hoje eu enxergo o mundo com estranheza e ainda espero por uma resposta que não vem”. Não vindo a resposta esperada, suas tentativas para superar as dimensões limitadoras do tempo podem servir como respostas para outros.

Blanca Brites

 

Exposição realizada na primeira sede da Fundação Iberê Camargo, no bairro Nonoai.

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Material Didático_exposição Retrato - um olhar além do tempo (inglês)
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