Glênio Bianchetti e a arte para muitos olhos

Roberta Amaral
07.nov.19

A curadora e crítica de arte Marília Panitz conviveu com Glênio Bianchetti em seu processo de trabalho e, hoje, ela escreve sobre seu “mestre generoso”, sua obra e seu legado.

Por Marília Panitz
Crítica de arte e curadora independente / Distrito Federal

Um apartamento “brasiliense” (modernista): lugar onde, pela primeira vez, convivi com um artista em seu processo de trabalho. O atelier, na sala, recebia quem chegasse. Passei a frequentá-lo porque era colega de uma de suas filhas. Começávamos a universidade, no Departamento de Arte, do qual ele havia sido professor, no início dos anos 60 até o golpe. Ele se interessava por quem chegava, convidava a sentar e a observar. Que ato importante era vê-lo pintar.

Depois desse tempo, fui professora na escola de arte que Ailema Bianchetti e outras duas sócias dirigiam. A partir daí, passamos a conviver (até hoje) com sua obra, seu legado, sua família e uma história que continua se desvelando dentro do atelier de sua casa, com seus quadros, suas gravuras, e os arquivos de seu percurso organizados por Ailema.

Documentos que nos permitem voltar a Bagé, ao início, ao aprendizado, ao grupo de artistas que deslocou o centro dos acontecimentos para a cidade das fazendas, perto da fronteira do Uruguai. De lá, os jovens Glênio Bianchetti, Carlos Scliar, Danúbio Gonçalves e Glauco Rodrigues começaram a falar para o mundo. A gravura que se produziu a partir daí representa o pampa, o homem comum da região. Há uma convicção (em sintonia com os artistas modernistas de outros lugares do Brasil) que essa é a função da arte. E esta convicção acompanha Glênio por todo o seu percurso.

De Bagé, muda-se para Porto Alegre e de lá a Curitiba e Brasília, onde vem ajudar Darcy Ribeiro a construir o sonho da universidade nova, na “cidade nova, síntese das artes”. O sonho coletivo se desfaz em poucos anos, mas se sustenta no embate com o material, na produção da obra do artista.

Os anos 70 reúnem outra vez o grupo de Bagé, em sua cidade natal. É realizado um encontro de artes plásticas, do qual tomam parte vários artistas de todo o Brasil. Glênio traz uma série de croquis e obras em torno do homem do pampa. Mas a linguagem, embora guarde a estrutura das gravuras dos anos 50, já é outra, já são outros os corpos em ação, às vezes quase entregues à abstração.

Brasília, em sua longa convivência com Bianchetti, foi incorporando, a seus espaços, as imagens produzidas por ele. Em prédios públicos, em coleções particulares, lá estão as representações do trabalho, com seu apelo épico, homem transformando a natureza. Ao seu lado, o jogo e a sensualidade, corpos distendidos, em repouso. E as paisagens da planície do pampa ao planalto central e a linha do mar, os horizontes retos, cortados pelos corpos e pelas árvores.

O último trabalho de Glênio ficou inacabado. Dos traços que ficaram sobre a base da tela, adivinhamos as cores e gestos que viriam e que continuam dentro de nossos olhos.

(Nesta sexta-feira, último dia da série Os Quatro – Grupo de Bagé, o cineasta Zeca Brito escreve sobre Glauco Rodrigues)