Lina Bo Bardi: a mulher que transformou a arquitetura e a arte no Brasil

02.jul.20

Impossível fazer uma retrospectiva da nossa história sem falar das mulheres que se oposurem às restrições impostas a elas, que quebraram paradigmas e que influenciaram a mudança do pensamento. Entre tantos nomes expressivos, marcados por ideias revolucionárias e humanistas, está o da arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi (Roma, 1914 – São Paulo, 1992). Sua trajetória pessoal e profissional se misturam, de muitas formas, aos avanços e contradições do século 20. Falecida em 20 de março de 1992, aos 77 anos, Lina Bo se destacou pela construção de obras com conceitos tão sólidos quanto cada um dos prédios e casas que ergueu.

Ela não apenas fez edifícios, como também representou o espírito do seu tempo a partir de uma intensa produção cultural. Além de ilustradora, cenógrafa, designer, escritora, curadora e artista visual, Lina Bo compreendeu a cultura brasileira, disseminando um espírito moderno que transformou as formas de se entender a arte e a arquitetura no país. Tornou-se um ícone da ideologia que compreende a mulher multifacetada, que aponta as nuances de uma sociedade que ainda impõe a constante busca pela igualdade de gênero, de direitos políticos e, principalmente, por espaço no mercado de trabalho, na produção intelectual e na esfera pública.

Nascida Achillina di Enrico Bo, Lina formou-se em Arquitetura pela Universidade de Roma, em 1939. Apesar de ser um terreno árduo para uma mulher exercer a profissão, em Milão ela conseguiu ganhar alguma visibilidade e montar seu próprio escritório. O final foi devastador. A Europa vivia a Segunda Guerra Mundial e, em 1943, todos seus projetos e sonhos foram bombardeados. “(…) enquanto as bombas demoliam sem piedade a obra do homem, que compreendemos que a casa deve ser para a ‘vida’ do homem, deve servir, deve consolar; e não mostrar, numa exibição teatral, as vaidades inúteis do espírito humano”, explica a arquiteta no livro “Lina por escrito”, organizado em 2009 por Silvana Rubino e Marina Grinover.

Em 1946, casou-se com o jornalista, crítico, marchand e galerista Pietro Maria Bardi (La Spezia, 1900 – São Paulo, 1999), que conhecera na redação da revista Domus, da qual era colaboradora. Combinando uma viagem de núpcias com um convite de Assis Chateaubriand a Bardi para ajudar a fundar e dirigir um museu de nível internacional em São Paulo, o casal aportou no Brasil.

A primeira parada foi no Rio de Janeiro, onde Lina Bo viu a possibilidade de expandir suas ideias e projetos dentro do movimento modernista, com novas tecnologias e materiais como concreto armado e o aço para construir formas limpas e sem ornamentação. “Me senti num país inimaginável, onde tudo era possível”, disse ela sobre chegar ao Brasil.

Foi então que Chateaubriand convidou Lina Bo para desenvolver o projeto arquitetônico e expográfico do tão sonhado museu de arte moderna. Após 12 anos de obras, o MASP foi inaugurado no dia 7 de novembro de 1968, com visual futurista.

O vão livre foi uma exigência do antigo dono, que doou o terreno para a prefeitura: a vista para o centro da cidade e para a Serra da Cantareira teriam de ser preservadas. As colunas vermelhas, apesar de constarem no projeto original, surgiram apenas nos anos 1990, após uma parceria com uma empresa de tintas. O MASP é considerado o museu mais importante do Hemisfério Sul e conta com cerca de 10 mil peças, abrangendo arte africana, das Américas, asiática, brasileira e europeia, desde a Antiguidade até o século 21, incluindo pinturas, esculturas, desenhos, fotografias e roupas, entre outros.

Museus como espaços democráticos
O Museu de Arte de São Paulo foi um laboratório criativo para a arquiteta, que retirou as obras das paredes e as expôs em cavaletes de cristal. Lina Bo pensava os museus como espaços democráticos, de aprendizado e socialização. Com esta forma de disposição das peças, os visitantes poderiam escolher o percurso entre elas e, ainda, observar o verso de cada uma.

Em sua tese de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural pela Universidade de Pelotas, “A imaginação museal de Lina Bo Bardi: expografias (1947-1968)”, Ricardo Pintado destaca: “Lina Bo e Pietro Maria Bardi foram criadores de museus de arte com uma perspectiva museológica inovadora que se revela nos planos institucionais e, consequentemente, na formação e extroversão de seus acervos. Sobretudo, na constituição de museus pensados como centros de atividades culturais dinâmicos com programação de atividades voltadas para atrair o público e fazer do museu um local de frequência habitual (…) Colocado em outros termos, há uma imaginação museal nas ações do casal Bardi que contribuíram para a expansão deste universo no Brasil.”

A casa de vidro e seus contrastes
Radicados em São Paulo, rapidamente, Lina e Bardi tornaram-se figuras conhecidas na elite intelectual. Além do MASP, chamava a atenção da sociedade paulistana a Casa de Vidro, a primeira obra da arquiteta a sair do papel e finalizada em 1951, onde o casal viveu por quase 50 anos.

Primeira residência do bairro do Morumbi, até então dominado pela Mata Atlântica, a Casa de Vidro é composta por dois blocos principais: um volume de aço e vidro, suspenso por pilotis, comportando a sala de convivência (living) e a biblioteca, e um volume opaco e caiado, preso diretamente ao chão. Entre eles, uma cozinha com eletrodomésticos que, na época, eram de última geração.

Embora não se declarasse propriamente feminista, Lina engajava-se nas questões de libertação correntes no período. Segundo Maíra Teixeira Pereira, que estudou algumas construções de Lina na tese de doutorado “As casas de Lina Bo Bardi e os sentidos do habitat”, a Casa de Vidro é um exemplo da preocupação com a influência da arquitetura sobre a rotina das mulheres, em especial aquelas que ganhavam terreno na vida profissional, mas ainda não conseguiam se dissociar por completo dos papéis domésticos.

Em 1987, a Casa de Vidro foi tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico (CONDEPHAAT) e pelo pelo IPHAN (Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e, desde 1995, é sede do Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, onde abriga parte da coleção de arte adquirida pelo casal ao longo de suas vidas.

As múltiplas faces de Lina Bo Bardi
Designer/Artista Plástica – Até os anos 1940, Lina produziu pinturas em guache e aquarela. Na época, ainda na Itália, ela começou a trabalhar com ilustrações, impelida pela intensificação dos bombardeios na 2ª Guerra Mundial, que impediam a realização de obras arquitetônicas. Lina também desenhou joias, principalmente colares e broches, e móveis, como o projeto da poltrona Bardi’s Bowl. Além disso, atualizou a moda em São Paulo, trazendo desfiles de estilistas europeus.

Cenógrafa/Figurinista – A arquiteta fez a cenografia de espetáculos como “Ópera de Três Tostões” (1960) e dos filmes “A Compadecida” (1968) e “Prata Palomares” (1970). Ela também assinou o figurino de espetáculos, como “Calígula” (1961) e “Na Selva das Cidades”.

Acadêmica/Professora – Lina Bo criou o Curso de Desenho Industrial no Instituto de Arte Contemporânea (órgão ligado ao MASP que precedeu o atual IAC); foi docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (1955-1957) e também deu aulas de arquitetura e urbanismo na temporada que passou em Salvador (BA), no final dos anos 1950.

Museógrafa – Um dos maiores focos de atuação de Lina Bo Bardi foi o preparo de exposições, abraçando atividades hoje divididas em museografia (adequação das mostras à missão do museu), museologia (meios de conservação e viabilização de acervos) e expografia (a geografia das exposições).

Alguns destaques de sua carreira em São Paulo:
– “Agricultura Paulista” (1951), no parque da Água Branca;
– “Trajes” (1951), no MASP (foi a primeira vez que um museu hospedou um desfile de moda para, como disse a própria Lina, “abreviar a distância entre o museu-templo e a vida”;
– “Bahia no Ibirapuera” (1959), paralela à 5ª Bienal de São Paulo;
“A Mão do Povo Brasileiro” (1969), mostra dedicada à cultura popular brasileira, que inaugurou o atual MASP;
– “Design no Brasil – História e Realidade” e “O Belo e o Direito ao Feio” (1982), no Sesc Pompéia;
– “Caipiras, Capiaus: Pau-a-Pique” (1984), no Sesc Pompéia.

Outras quatro obras ao estilo Lina Bo Bardi
SESC Pompéia – Com uma rua aberta que atravessa o complexo de ponta a ponta, o prédio tem como marca as janelas aparentemente disformes imitando as formas das batatas brasileiras, que surpreenderam Lina quando chegou ao Brasil.

Recuperação do Solar do Unhão – O Solar do Unhão é uma construção do século 16, banhada pela Baía de Todos os Santos e uma das vistas mais incríveis do pôr do sol em Salvador. Criado em 1960 no foyer do Teatro Castro Alves, foi apenas em 1963 que o Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA) teve o solar como sua sede definitiva. A principal modificação que Lina Bo fez na estrutura foi demolir o segundo piso do casarão, criando uma escada de madeira de grandes dimensões, apenas com encaixes e sem pregos, reproduzindo aquelas utilizadas em carros de boi.

Igreja do Espírito Santo – Localizado em Uberlândia (MG), o santuário encanta os visitantes por suas formas arredondadas e simplicidade. Em seu interior, telhas de vidro deixam entrar a luz do sol, o que dá ainda mais serenidade ao altar onde tecidos pendem do teto. Construída em conjunto com a comunidade local, apenas os pilares e as vigas estruturais dos volumes circulares receberam concreto armado. Em todo o resto foram usados materiais utilizados em casas rurais mineiras da região, como tijolos de barro e aroeiras para fabricar as portas.

Teatro Oficina – Esta foi uma das últimas obras de Lina Bo Bardi, que uniu a simplicidade e a clareza de sua obra e o estilo artístico do diretor de teatro Zé Celso, que como Lina, queria que cada uma de suas peças provocasse o encontro e o convívio entre o homem e sua arte. Em 2015, foi eleito o melhor teatro do mundo na categoria “Projeto Arquitetônico” pelo The Observer, o jornal dominical do The Guardian.