O planeta pede socorro: as emergências do sul global no FestFoto 2020

12.maio.20

“Quem tem medo dos fotógrafos? Quem tem medo de fotografias? Quem não quer ver imagens produzidas em espaços públicos? Marchas, atos, intervenções artísticas, greves de fome e acampamentos servem para diferentes atores sociais apresentarem suas opiniões, propostas e demandas. Os protestos são a forma pela qual diferentes grupos lutam para tornar visíveis suas demandas, seus modos de pensar, ver e sentir. Os fotógrafos são um elo fundamental nesse processo de visibilidade social. O que acontece na rua atinge a opinião pública em massa através de suas imagens, e essas fotografias podem ajudar a gerar aprovação ou rejeição, podem influenciar seu sucesso ou fracasso. Ao longo da história Argentina, o trabalho de fotógrafos permitiu denunciar tentativas de impunidade, expandir os limites do visível, evitar as proibições, trazer à tona a repressão e mostrar o que era mantido em segredo. Muitas vezes, essas limitações foram o ponto de partida para novas formas de criatividade e iniciativas coletivas. Apesar de tentarem reduzir o trabalho do fotojornalismo, nós já sabemos: é impossível cobrir o sol com as mãos.”  (Cora Gamarnik)

Pelo segundo ano consecutivo, a Fundação Iberê abrirá suas portas para o Festival Internacional de Fotografia de Porto Alegre – FestFoto 2020, abordando as emergências do sul global. O tema não trata de uma região geográfica com limites precisos, mas do resultado do compartilhamento das condições de transitoriedade que provoca a urgência de soluções sociais.

A 13ª edição vai ocupar o Átrio e outros dois andares com trabalhos de aproximadamente 45 fotógrafos e artistas visuais, como o mineiro Rodrigo Zeferino, vencedor do XV Prêmio FCW de Arte, um dos mais importantes do Brasil, oferecido pela Fundação Conrado Wessel. Ele desbancou mais de 500 profissionais com o ensaio O Grande Vizinho, sobre a estranha paisagem urbana de Ipatinga, sua terra natal, que cresceu em torno de uma grande usina siderúrgica, a Usiminas.

Surgida em 1960, a cidade é o ponto final de uma cadeia produtiva que, nos últimos anos, vem assumindo contornos cruéis. É destino de boa parte do minério arrancado das montanhas mineiras, que, por sua vez, é transformado em aço e devolvido à sociedade em forma de automóveis, celulares e utensílios domésticos, por exemplo. Este é o mesmo minério, cujo processo de exploração traz consigo consequências ambientais e humanas já bem conhecidas.

Esta série Máquina-Terra é derivada de O Grande Vizinho. As primeiras fotos foram compartilhadas, em 2017, nas redes sociais e na imprensa. Após uma longa negociação com a empresa, ele recebeu autorização para fotografar com “liberdade criativa” e circular por todos os locais desejados nas áreas internas. “O objetivo não era retratar os processos com a fidelidade em que acontecem, mas mostrar uma visão desconstruída dos ambientes”, destaca Zeferino.

Para o FestFoto, Zeferino convidou outros expoentes da fotografia e da arte no Brasil para abordar as emergências ambientais: João Castilho (Partículas Metálicas), Júlia Pontés (Veias Minerais) e Pedro David (Mar de Morros). Eles reverberam o recado da montanha, traduzido imageticamente por cada um em suas respectivas cosmovisões acerca do histórico de devastação sistemática desse horizonte de eventos que se alinha com uma geoeconomia terceiro-mundista.

“As imagens resultantes levam a uma reflexão sobre a transformação da paisagem natural de um país. No lugar da obsolescência programada, urge-se uma reprogramação do modelo econômico. A felicidade ainda é feita de metal”, destaca o fotógrafo.

Máquina-Terra

A série Máquina-Terra, de Rodrigo Zeferino, tem como protagonista a usina que ocupa o centro geográfico de sua cidade natal. Derivadas do projeto O Grande Vizinho, um olhar sobre a absurda proximidade entre as paisagens urbana e industrial de Ipatinga, as imagens surgem a partir da imersão do artista nas entranhas do gigante metálico, percorrendo o mesmo trajeto do minério que, lá dentro, toma a forma de chapas brilhantes. No vídeo Transe Maquínico, tudo se conecta a tudo, um emaranhado de tubos, esteiras, rios de “lava”, são centenas de quilômetros percorridos pela matéria-prima até tornar-se aço laminado. A câmera, por sua vez, se posiciona numa espécie de ponto de vertigem e vê como um olho que parece estar nas coisas, que está na própria matéria. 

Mar de Morros

Em sua série Mar de Morros, Pedro David registra as marcas de areia e terra de casas em construção, acumuladas nas calçadas de sua jovem vizinhança, e as associa com morros de Minas Gerais, aqueles que já sumiram ou os que terão destino semelhante. 

Veias Minerais

Em Veias Minerais, Júlia Pontés registra meticulosamente todas as áreas de exploração mineral no estado, seja para extração de minério ferro, ouro, nióbio, alumínio e até ardósia. No vídeo O Maior Trem do Mundo, ela toma emprestado o título do poema de Drummond para mostrar a assustadora magnitude de uma composição com mais de 200 vagões escoando minério para o Vale do Aço e para o litoral. A captação dessas imagens é feita na companhia de moradores locais, que observam e comentam.

Partículas Metálicas

A série Partículas Metálicas integra uma sequência de obras em que João Castilho se apropria de signos relativos aos efeitos da mineração e os contrapõe à fortuna mineira representada tanto pelo barroco quanto pela arte contemporânea, assim como pelas belas paisagens naturais. Além das cidades anciãs que coexistem com a mineração voraz em seus arredores, a região abriga um dos mais importantes acervos de arte atual do mundo, o Museu Inhotim, localizado em Brumadinho, a segunda cidade a sofrer com uma catástrofe causada por mineradoras em quatro anos. Tudo e todos que por ali residem estão sob algum nível de risco. As cores distorcidas, conseguidas com uso de filtros analógicos acoplados à lente da câmera, trazem uma dimensão de delírio para as imagens. E faz nascer a paranoia delirante de presenciar o imperativo do progresso cruzar sua própria potência destruidora.