sem título, c.1989
tinta de esferográfica sobre papel
23 x 34 cm
Acervo Fundação Iberê
Tombo D0923
Foto © Fabio Del Re_VivaFoto
“Há gente caminhando dentro de mim, há trens chegando, há trens partindo. Meu pai, o estacionário – ostenta seu vistoso boné vermelho, que o diferencia –, dá partida ao comboio com um toque de sino. Trilha o apito do chefe de trem. O maquinista responde com um silvo. A composição se estira, range e começa a andar. A princípio devagar, devagar, depois mais e mais acelera a marcha. Leãozinho, o chefe de trem, imberbe e pernilongo, lhe corre ao flanco à moda dos caubóis dos seriados, que montam o cavalo no galope. Ele salta ágil na plataforma do último vagão e leva a mão à pala do boné, numa saudação aos que ficam a ver o trem sumir soluçando na curva e enchendo o céu de fumo, que se mistura com o negro da noite. É o trem noturno que sobe a serra: bota fogo, maquinista; bota fogo, seu foguista; bota fogo, maquinista; bota fogo, seu foguista, diz a máquina, resfolegando. Como o Ciclope da lenda, porta na fronte um facho de luz que alumia o caminho. Arrasta o comboio, iluminado, que na memória é um trem de brinquedo. A manobreira, uma máquina pequena, o ajuda a subir. Ambos vão semeando fagulhas, estrelas luminosas que, misturadas às nuvens de fumo, se apagam.”
CAMARGO, Iberê; MASSI, Augusto (org.). Gaveta dos guardados: Iberê Camargo. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 54.
“Entra-se na obra de Iberê Camargo tendo a cronologia como guia. A relação com o passado, como um mundo feliz e desaparecido, dá sua nota de melancolia a uma das buscas pictóricas mais consequentes e solitárias da pintura brasileira dos últimos cinquenta anos. Sem dúvida, a terra da infância, aquela região que envolve Restinga Seca onde Iberê nasceu em 1914 é uma terra dura de onde o pintor descreverá em vários comentários o aspecto desértico e abandonado. Entretanto, nessas lembranças pessoais, ela guarda o calor do espaço familiar: a casa e a estação férrea onde trabalhava seu pai.
Sublinhando a importância do céu e do horizonte, essa paisagem de solidão é marcada igualmente pelas linhas formadas pelos trilhos perdendo-se na distância e pelos fios do telégrafo onde trabalhava sua mãe. Um mundo isolado e voltado para dentro, mas ao mesmo tempo ligado a outros mundos por essas linhas de fuga que os desenhos de Iberê não cessarão nunca de reproduzir.”
LEENHARDT, Jacques. Iberê Camargo: os meandros da memória. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2010. p. 9.