Ilustração para o conto O colchão, 1988
nanquim sobre papel
33,5 x 22,2 cm
Acervo Fundação Iberê

Tombo D3022

Foto © Fabio Del Re_VivaFoto

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Desenho elaborado para ilustrar o conto “O colchão”, escrito por Iberê Camargo e publicado em 1988 pela editora L&PM no livro “No andar do tempo: 9 contos e um esboço autobiográfico”:

O colchão

“Quando, dez anos atrás, eu me instalei no ateliê da rua dos Frades, onde estou ainda hoje, o amigo que me alugou pediu-me para deixar ficar, por alguns dias, um empregado seu que ainda não encontrara lugar para morar. Concedi o favor, embora sabendo que a presença daquele estranho me perturbaria. Eu atravessava uma fase em que desejava estar só, queria trabalhar sem descanso.
De manhã, quando entrava no ateliê, ele ainda estava deitado sobre o colchão, que à noite estendia no meio da sala, justamente no lugar onde eu trabalhava. Acordando, sentava-se, distendia os braços, coçava as pernas, o peito, o pescoço, desgrenhava o cabelo, bocejava e, depois de fitar o teto por algum tempo, levantava-se. Com os olhos semicerrados, o passo incerto, enrolava o colchão e colocava-o num canto da sala; e saía. Todas as manhãs repetia-se a mesmíssima cena, sem faltar um só detalhe.
Passaram-se muitas semanas, passaram-se meses, e o ajudante não ia embora. Parecia difícil encontrar outro lugar barato que lhe servisse. Fosse por que fosse, ele permanecia no ateliê, e sua presença tornava-se para mim cada vez mais incômoda, mais perturbadora. Eu já estava aborrecido.
Finalmente, após vários entendimentos com seu patrão, para forçá-lo a ir embora, ele desapareceu. Mas ficaram os seus tarecos: camisas, meias, toalhas… e o colchão. Não voltou para apanhá-los. Essas coisas, sujas e malcheirosas, incomodavam-me, irritavam-me. Não sabia onde metê-las quando fazia a limpeza do ateliê. Para livrar-me desse aborrecimento, empacotei a roupa e levei para a casa do seu patrão. Mas o colchão teve de ficar… era demasiado volumoso e eu não queria, de modo nenhum, ser carregador.
Como sempre tive respeito pelas coisas alheias, aguardei ainda muito tempo, na esperança de que ele viesse buscá-lo. Mas à medida que os dias se escoavam nessa expectativa, sentia-me mais e mais inquieto e amargurado.
Não sei, não posso explicar, mas, vendo aquele colchão, sentia também a presença do dono: ele ainda estava ali, espichado, grudado no meio da sala, bem no lugar onde eu costumava trabalhar, e agora… também fedia! Era qualquer coisa que me impedia de ficar livre e só. Ilusão ou não, eu o sentia ali e não podia estar tranquilo, não podia sentir-me só com os meus pensamentos, com as minhas fantasias, com o meu trabalho, como havia desejado e agora desejava obsessivamente.
Para acabar com aquela tensão que crescia sem cessar e me dilacerava, resolvi dar sumiço no maldito colchão. Mas como? Queimá-lo, não era possível. Nos apartamentos modernos não existem pátios abertos. Jogá-lo na rua, ainda menos. Então, tive a ideia de empurrá-lo lixeira abaixo e misturá-lo com a imundície geral. Mas como a boca da lixeira era muito estreita, tornou-se-me necessário estripar o colchão e fazê-lo em pedaços. Para isso, estendi-o no chão e, de navalha em punho, cortei, qual um cirurgião, o seu ventre, num talho longo e perfeito. Depois, com as mãos nervosas, tentei arrancar-lhe as vísceras. Estas, porém, não se desprendiam. As fibras, entrelaçadas e costuradas com fios fortes, continuavam presas ao forro. Pus-me, então, a cortar os fios, um após outro, até que a palha se soltou. Apanhei avidamente um punhado dessas vísceras mumificadas, aplastadas pelo uso, e corri para a lixeira, que ficava no fim do corredor. Fui e voltei muitas vezes, carregando sempre novas braçadas de palha, que apertava contra o peito. Mas a palha não acabava nunca, parecia que se duplicava. Daí a pouco já não descia mais. A lixeira estava entupida. Com um pedaço de pau procurei empurrá-la, numa tentativa desesperada de desobstruir a passagem, mas em vão.
Então, senti-me culpado, senti sobre mim a pesada acusação dos vizinhos, a censura de todos. Apressado, procurei fazer desaparecerem todos os vestígios, a mínima prova do que fizera. Ajoelhei-me no corredor e comecei a recolher, com a ponta dos dedos, um a um, os pedacinhos de palha espalhados pelo chão. O amarelo fosco da palha, destacando-se do pavimento de tijolos vermelhos, desenhava um rastro denunciador entre a lixeira e a porta do meu apartamento. Era a prova irrefutável contra mim do delito. Senti-me fatigado e oprimido. Dentro do forro restavam ainda muitos montes de palha para jogar fora. Não se esvaziava mais o imenso ventre do colchão, que, aberto, mostrava as entranhas amarelas.
Era preciso acabar com aquilo de uma vez. Chamei, pois, um homem de minha confiança e mandei que levasse para longe os restos do colchão, para qualquer lugar.
– É coisa sem importância, não é nada – disse-lhe eu, para tranquilizá-lo. – Leva-o. Está ali, no fundo daquele caixão, coberto com um pano.
E apontava com o indicador, incitando-o a resolver-se. Ele me olhava com um ar apalermado, olhos fixos, resmungando palavras que eu não compreendia. E permanecia ereto, diante de mim, sem se mexer. Será que desconfiava de mim? Teria medo de carregá-lo? Temia, talvez, pôr sobre os ombros os restos de alguém?… Parecia hesitar… não sei.
Finalmente, decidiu-se. E eu o vi, com alívio, o colchão às costas, desaparecer na escuridão da noite…”

1958

 

“O leitor […] terá, neste conjunto de nove contos, um novo aspecto da sensibilidade de Iberê Camargo. […] Se, como diz Iberê, vida e arte não se separam, sem dúvida os contos que agora temos neste volume iluminarão partes da vida e da pintura deste artista excepcional, responsável, entre outros, pelo surgimento do Atelier Livre de Porto Alegre, escola livre que formou alguns de nossos mais importantes artistas plásticos a partir da década de 60, fato que ele, humildemente, não revela no seu depoimento, ou preferiu esquecer, mas que lhe devemos, de qualquer maneira.”

Antonio Hohlfeldt, na apresentação do livro No andar do tempo: 9 contos e um esboço autobiográfico, 1988