Ilustração para o conto Acidente em Angra, 1988
nanquim sobre papel
33,5 x 22,7 cm
Acervo Fundação Iberê

Tombo D3023

Foto © Fabio Del Re_VivaFoto

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Desenho elaborado para ilustrar o conto “Acidente em Angra”, escrito por Iberê Camargo e publicado em 1988 pela editora L&PM no livro “No andar do tempo: 9 contos e um esboço autobiográfico”:

Acidente em Angra

“Em 1969, a Companhia MVA – Merda Vaporizada Aérea –, após exaustivos estudos, construiu um revolucionário sistema agrometeorológico para adubar os campos do Rio Grande do Sul, exauridos pela monocultura.
O projeto foi do engenheiro alemão Struck, famoso pela teimosia, e grande conhecedor e bebedor de vinho.
Fui encarregado de executar as plantas – nessa época eu trabalhava no escritório técnico da MVA, uma poderosa multinacional. Desenhei a planta baixa do conjunto, elevações, cortes, detalhes das complexas instalações elétricas e hidráulicas e uma perspectiva panorâmica da usina, que ocupava mais de quatro mil metros quadrados de área. O mervapor, como depois se chamou, foi construído em Angra, um aprazível balneário de águas térmicas, vizinho a Caçapava.
Para a realização deste projeto o país fez um dos seus maiores empréstimos no exterior.
A usina funcionou a pleno vapor e com absoluto êxito até o dia do lamentável acidente que a paralisou para sempre. Os jornais da época, sob pressão, silenciaram ou minimizaram o fato. O sistema do mervapor consistia em canalizar os dejetos humanos das grandes cidades para uma gigantesca fossa, onde eram macerados até se transformarem em líquidos e posteriormente em vapor. A maceração dos excrementos obtinha-se pelo pisotear em compasso de marcha – um, dois; um, dois; um, dois – de gigantescos pés de bronze que, como poderosos êmbolos, subindo e descendo, moíam os dejetos até torná-los líquidos. Este processo de maceração foi inspirado diretamente no antigo método de fabricação de vinho, que consistia em esmagar as uvas com os pés para lhes extrair o suco. Nos garrões desses pés de bronze giravam poderosas hélices, como gigantescas esporas. Bem se evidencia o nosso arraigado e louvável respeito às nossas caras tradições.
Liquefeita a matéria fecal, esta era conduzida, através de uma complicada rede de condutos, a uma grande caldeira revestida de cobre semelhante a um tacho, onde era aquecida até a sua completa evaporação.
A merda, assim volatilizada, era expedida pelas rotas aéreas da Birde’s Line, em forma de nuvens biodegradadas (naquele tempo não se conhecia este termo) que se precipitavam em chuva nos locais preestabelecidos. As nuvens eram dirigidas por controle remoto assim como a precipitação, com precisão eletrônica.
Ao serem expelidas, ouvia-se um ronco nos condutos, um borbulhar, um cascatear de sons, semelhantes a trovoadas. As nuvens acinzentadas, espécie de nimbos, chamavam-se Iolandas; outras brancas, redondas, diáfanas, chamavam-se de prima donna.
Apenas o pedido dos agricultores aparecia no vídeo do computador – Mande cinco Iolandas! – a torre de comando as expedia. Assim, comboios de nuvens desfilavam pelo céu, como um rebanho de ovelhas, para fertilizarem os campos. Os turistas acorriam ao Aeromerd, que se abreviava por MER, assim se chamava essa espécie de aeroporto, para assistirem ao belo espetáculo que a partida – take-off – oferecia.
Isto trouxe muita riqueza, as colheitas ultrapassaram todas as previsões, foi um tempo de fartura. Este intenso tráfego de fertilizante que beneficiava a agricultura – já se falava na erradicação da fome no mundo – e enriquecia o país foi interrompido por um lamentável erro do computador ou por sabotagem, o que até hoje não foi esclarecido. Num dia de primavera, sob um céu de azul Blockx, luminoso, um longo comboio de nuvens Iolandas escapou do controle da torre de comando e entre relâmpagos, raios e trovoadas desabou sobre uma parada militar, emerdando-a. Este desastre ecológico foi considerado um insulto às forças armadas, talvez à pátria.
A desativação da usina foi imediata, por decreto do presidente da República. Nunca mais se falou no ocorrido.
Apenas ficou o dito na boca do povo:
– Cuidado! Troveja para as bandas de Caçapava.”

Porto Alegre, outubro de 1986

 

“É sabido que os diferentes artistas que gravitaram em torno do espírito surrealista viram nas coisas, e ainda mais em sua imagem, uma interrogação poética ou crítica mais do que uma realidade empírica a representar. […]
Iberê Camargo retomou esse processo crítico em um conto burlesco e antimilitarista: ‘Acidente em Angra’. Nessa narrativa, um florão da indústria moderna tenta produzir adubos a partir de excrementos humanos das grandes cidades usando a antiga técnica rural do pisotear da uva para produzir o vinho:
‘A maceração dos excrementos obtinha-se pelo pisotear em compasso de marcha – um, dois; um dois; um dois – de gigantescos pés de bronze que, como poderosos êmbolos, subindo e descendo, moíam os dejetos até torná-los líquidos. […] Bem se evidencia o nosso arraigado e louvável respeito às nossas caras tradições.’
Uma série de desenhos e de guaches sob o mesmo título, Acidente em Angra, demonstra da maneira mais caricaturalmente carnavalesca, como Iberê vale-se do poder devastador da imagem cuja violência ácida dominará toda a última parte da obra.”

LEENHARDT, Jacques. Iberê Camargo: os meandros da memória. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2010. p. 23-25. (Observar nota na fonte).

 

“O leitor […] terá, neste conjunto de nove contos, um novo aspecto da sensibilidade de Iberê Camargo. […] Se, como diz Iberê, vida e arte não se separam, sem dúvida os contos que agora temos neste volume iluminarão partes da vida e da pintura deste artista excepcional, responsável, entre outros, pelo surgimento do Atelier Livre de Porto Alegre, escola livre que formou alguns de nossos mais importantes artistas plásticos a partir da década de 60, fato que ele, humildemente, não revela no seu depoimento, ou preferiu esquecer, mas que lhe devemos, de qualquer maneira.”

Antonio Hohlfeldt, na apresentação do livro No andar do tempo: 9 contos e um esboço autobiográfico, 1988