Ilustração para o conto Justiça de Deus, 1988
nanquim sobre papel
32,9 x 21,9 cm
Acervo Fundação Iberê
Tombo D3029
Foto © Fabio Del Re_VivaFoto
Desenho elaborado para ilustrar o conto “Justiça de Deus”, escrito por Iberê Camargo e publicado em 1988 pela editora L&PM no livro “No andar do tempo: 9 contos e um esboço autobiográfico”:
Justiça de Deus
“Um homem que acreditava que no mundo somente acontece o que Deus consente, resolveu pô-lo à prova.
Pensando no leão que, outrora, na arena do Coliseu lambeu a mão de um cristão posto ali para morrer, decidiu-se também ele expor-se às feras. No Zoológico, começou cavalgando o crocodilo, pisando-lhe o dorso, puxando-lhe a cauda com surpreendente passividade do réptil. Depois investiu, destemido, contra o elefante, esmurrando-lhe o ventre, puxando-lhe a tromba, gambeteando-lhe em torno, com negaças de capoeirista baiano, sem que o paquiderme lhe notasse sequer a presença. Parecia que o animal estivesse mergulhado em profundo sono hipnótico. Investiu também contra as girafas, contra as zebras, contra animais de pelo, e pena, sem que nenhum reagisse às suas agressões. Isto o tornou mais ousado.
Convicto de que se encontrava sob a proteção de Deus, dirigiu-se à jaula do leão e arregaçando as mangas da camisa, decidido, introduziu os dois braços nus pelas grades da jaula. O leão, à vista daquela carne rosada, viva, palpitante e de apetitoso odor humano, num salto, abocanhou-lhe os braços com suas poderosas mandíbu- las. O homem seria feito a pedaços se não fosse a pronta intervenção dos guardas e dos visitantes que acorreram em tropel.
O temerário foi retirado inconsciente, com os braços mutilados, sangrando.
“Senhor, justiceiro e bom, dai-me a comer um desses ignóbeis gringos, uma dessas ridículas criaturas que diariamente circulam em torno de minha prisão, mastigando, atormentando-me com conversas tolas, com seus radinhos de pilha colados aos ouvidos, e com a torpe curiosidade com que devassam a minha intimidade real. Aqui estou encarcerado para morrer de velhice nesta estreita e fétida jaula, mal alimentado, preso sem culpa formada. Não me concedem o direito de defesa. Nem ao menos tenho um desses tantos advogados chicaneiros que a lei concede ao mais perverso dos facínoras.”
Ele não ouvira esta fervorosa prece do leão a Deus.”
Porto Alegre, setembro de 1986
“O leitor […] terá, neste conjunto de nove contos, um novo aspecto da sensibilidade de Iberê Camargo. […] Se, como diz Iberê, vida e arte não se separam, sem dúvida os contos que agora temos neste volume iluminarão partes da vida e da pintura deste artista excepcional, responsável, entre outros, pelo surgimento do Atelier Livre de Porto Alegre, escola livre que formou alguns de nossos mais importantes artistas plásticos a partir da década de 60, fato que ele, humildemente, não revela no seu depoimento, ou preferiu esquecer, mas que lhe devemos, de qualquer maneira.”
Antonio Hohlfeldt, na apresentação do livro No andar do tempo: 9 contos e um esboço autobiográfico, 1988