Ilustração para o conto O rato, 1988
grafite e nanquim sobre papel
34,7 x 23,4 cm
Acervo Fundação Iberê

Tombo D3043

Foto © Fabio Del Re_VivaFoto

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Desenho elaborado para ilustrar o conto “O rato”, escrito por Iberê Camargo e publicado em 1988 pela editora L&PM no livro “No andar do tempo: 9 contos e um esboço autobiográfico”:

O rato

“Meneando a cabeça sobre o travesseiro, Terêncio abre a boca, range os dentes, estala a língua e bufa. O rosto faz-se violáceo. Deitado sobre o dorso, seminu, braços cruzados sob a cabeça, pernas encolhidas, não sente o corpo. Uma dormência o invade, como um anestésico.
Os dentes, um intrincado de ossos amolecidos, desenraizados de seus alvéolos, se adelgaçam, se alongam e escorrem-lhe da boca. Terêncio, horrorizado, introduz os dedos na boca, para fixá-los aos maxilares. Quer falar, mas não consegue articular palavra. A língua seca lhe cola ao palato.
Um guincho estridente ressoa aos seus ouvidos. Terêncio estremece. Sobressaltado, arregala os olhos: acorda do pesadelo.
À frente, uma janela se abre por uma noite escura. Um bafo quente invade o quarto e envolve as coisas. O céu não tem estrelas. Os guinchos se sucedem cada vez mais estridentes e, agora, misturados com um rumor de água agitada. “Que será?”, ele se pergunta. Sobre a mesa, ainda se lambe um toco de vela que rabisca sombras na parede. O rumor continua. Terêncio tem o corpo insensível. Não pode se mover. Procura erguer-se, mas seus membros entorpecidos não obedecem, parece que não pertencem mais ao corpo. Para vencer o torpor, rola na cama. Finalmente, consegue erguer-se e sentar-se à sua borda: os pés não sentem o assoalho. Para reativar a circulação, esfrega as pernas e os braços, arranha-se, sacode-se como um cão molhado. Pouco a pouco, o corpo se faz presente. Aquele rumor inusitado o inquieta. Sente medo. Talvez ainda sonhe. Palpa a testa e a sente abrasada.
O rumor é insuportável, contundente, dilacera o silêncio. Parece que vem do andar térreo, o banheiro. Embora receoso, decide verificar a causa. Apanha a vela e envereda por um longo corredor da velha casa. Desce uma tortuosa escada de madeira que range ao seu peso. Arrasta as pernas ainda entorpecidas e a sombra que se alonga a cada passo, que se quebra nos degraus da escada e cresce até tocar o teto. Cauteloso, entra no quarto de banho, avizinha-se à banheira e a ilumina. “Diacho!”, exclama, tranquilizando-se: um ratão.
O animal debate-se numa água ensaboada, suja, usada de véspera. Desesperado, arremessa-se às paredes da banheira, porém suas garras resvalam na louça e ele recai na água. Então recomeça a nadar, costeando as paredes da banheira e emitindo guinchos desesperados. Terêncio, por instantes, contempla a cena. Sente piedade do animal. Sabe que é nocivo, voraz e transmissor de peste. Mas está vivo. Ele se pergunta: “São Francisco o deixaria morrer? ”. E sente-se atraído pela vida, mesmo sendo a de um rato repugnante. Decide-se por salvá-lo. Como? Procura em torno qualquer coisa com que possa tirar o rato da água.
Apanha uma vassoura e a estende ao rato. Ele rápido sobe e corre ao longo do pau e lhe subiria braço acima, talvez lhe chegasse à cabeça, se Terêncio com um safanão não o jogasse outra vez na água. A luta do rato para salvar a vida o comove. O animal continua a debater-se, a redemoinhar na água e a emitir guinchos estridentes. Terêncio os sente como agulhas a lhe transpassarem os ouvidos. É preciso encontrar um meio para salvá-lo, antes que seja tarde. Terêncio apressa-se. Apanha um balde. Ao segurá-lo, uma barata ziguezagueia entre seus pés, procurando esconder-se. Ele a esmigalha com o pé. Não sente pena.
Terêncio aproxima-se da banheira e apanha o rato de chofre, com o balde. O animal, ágil, sobe aos seus bordos e se agarra. Firmando-se com as patas posteriores, ergue o corpo e espicha o focinho pontudo. Com as patas dianteiras estendidas, apalpa o vazio, procurando o ponto de apoio que lhe falta. O rato cambaleia por alguns instantes. Depois, agitando a cauda, chicoteia a água e de novo estabelece o equilíbrio. Imediatamente se ergue e apalpa em volta. Franze o focinho, abre a boca, mostra os dentes e guincha. Terêncio novamente ergue o balde. O animal inclina-se para a frente. Novamente o rato lhe subirá pelo braço – improvisada ponte de salvação. Surpreendido com a rapidez do rato, Terêncio salta para trás e arremessa o balde na água. Este cai com rumor, balouça, gira, gira e depois flutua sobre aquela água espumosa. Com o baque, o rato cai, numa cambalhota, dentro do balde. Rápido, soltando amiudados guinchos, sobe à sua borda. O balde rodopia transportando-o, como um náufrago no escaler. Terêncio, impaciente, refaz a tentativa frustrada e novamente fracassa: mais uma vez, é obrigado a saltar para trás e jogar o balde na água com o rato que, desesperado, sobe-lhe aos bordos e nele se agarra. Terêncio não desanima, embora já cansado, mas o rato o envolve. Aquele ser peludo, maltratado, mostrando a pele rosada sob o pelo eriçado, move-se inquieto sobre a estreita borda do balde e fixa sobre ele seus pequenos olhos redondos, vermelhos como brasa. Terêncio nervoso resmunga, esfrega o nariz, alisa o bigode num gesto nervoso e sua em bicas. É necessário encontrar um meio de salvá-lo sem o risco de o rato subir sobre ele. Terêncio apanha uma toalha e tenta jogá-la sobre a boca do balde. O rato, vendo o pano aproximar-se, guinchando sobe pelas suas pregas que, moles e balouçantes, não lhe oferecem apoio. Terêncio afasta-o com um safanão da toalha. Depois, negaceando, circula em torno da banheira à espera de uma oportunidade: quando a vislumbra, de surpresa, joga a toalha sobre a boca do balde e o envolve segurando fortemente as pontas por baixo do balde. O rato, prisioneiro, guincha, debate-se dentro da armadilha para livrar-se. Arremessa-se contra o pano e o ponteia aqui e ali com o focinho.
Terêncio aos trambolhões transporta a sua presa bambaleante fora de casa e a despeja na rua: devolve o rato à cidade adormecida. O rato, estropiado, arrasta-se ao longo da sarjeta procurando um buraco para esconder-se. Terêncio o contempla. Depois o persegue, o alcança e salta enorme, pesado, com os dois pés sobre o seu corpo molhado: um esguicho de sangue escapa do focinho. O asfalto tinge-se de vermelho, as vísceras escapam do ventre e da boca do rato esmagado. Terêncio sente palpitar debaixo dos pés aquela carne macia, peluda e quente.”

Rio de Janeiro, 1959

 

“O leitor […] terá, neste conjunto de nove contos, um novo aspecto da sensibilidade de Iberê Camargo. […] Se, como diz Iberê, vida e arte não se separam, sem dúvida os contos que agora temos neste volume iluminarão partes da vida e da pintura deste artista excepcional, responsável, entre outros, pelo surgimento do Atelier Livre de Porto Alegre, escola livre que formou alguns de nossos mais importantes artistas plásticos a partir da década de 60, fato que ele, humildemente, não revela no seu depoimento, ou preferiu esquecer, mas que lhe devemos, de qualquer maneira.”

Antonio Hohlfeldt, na apresentação do livro No andar do tempo: 9 contos e um esboço autobiográfico, 1988