Gravura 3, 1968
água-forte e água-tinta (processo do açúcar)
29,5 x 49,6 cm
Acervo Fundação Iberê

Tombo G126-3

Foto © Fabio Del Re_VivaFoto

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“As gravuras em água-forte e água-tinta, executadas de 1959 a 1973, pertencem a um período significativo na minha obra gravada. ‘O que são elas?’ – perguntam-me muitas vezes, quase todas.
Não emito conceitos. Não me proponho definições. Elas são a minha presença e o meu testemunho. Eu as fiz com as minhas mãos e o meu coração, corroendo e ferindo a matéria como fizeram os artistas que me antecederam. Eu as fiz com simplicidade, no vagar do ácido, com a paciência do oleiro que coze a terra.
Movido pelo obscuro desejo de permanência – que é inerente ao homem – elaboro e plasmo a minha visão num esforço sem pausa e sem repouso, para deixar atrás de mim um rastro ainda que perecível como a pisada do boi no barro fresco, como a pegada do homem sobre o pó da terra ou como o simples decalque da mão.
Os carretéis estão sobre a mesa. Estão no pátio, são soldados pica-paus e maragatos. Estão girando enfiados nas máquinas de costura, despindo-se do fio. Estão sobre o convés capitaneando navios que singram sangas. Estão rodopiando nas piorras.
Serão, agora, estrelas de fantásticas constelações? Serão eles homens ou seres de antigos tempos, que do escuro espiam com seus olhos de ciclopes? Quem poderá explicar o que aconteceu com eles e comigo? Faz tanto tempo que nos separamos. Eles devem ter morrido soterrados nos quintais e nos porões das velhas casas.
Símbolo, signo, personagem – o carretel –, brinquedo da minha infância e agora, nesta fase, tema da minha obra, está impregnado dos conteúdos do meu mundo.
Ou será que essas figuras são os hectolitros e os decalitros que tanto me inquietaram com suas formas bojudas e bizarras, grandes canecas figuradas nos mapas que estavam dependurados na minha sala de aula? Como poderei individualizar coisas, precisar estímulos e especificar vivências que fornecem a matéria para a criação?
No ato criador, sou arrastado por impulsos que se desencadeiam como vendavais vindos não sei de onde. Vislumbro e persigo miragens interiores, que jamais consigo reconhecer na face da obra criada.
Mário Quintana disse: ‘A imaginação é a memória que enlouqueceu’. O poeta sempre intui a verdade.”

CAMARGO, Iberê; MASSI, Augusto (org.). Gaveta dos guardados: Iberê Camargo. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 74-76.