Ciclista 3, 1991
água-tinta (processo do guache e lavis)
29,5 x 19,5 cm
Acervo Fundação Iberê
Tombo G173-1
Foto © Fabio Del Re_VivaFoto
“Existem águas-fortes e pinturas de Iberê Camargo nas quais encontra-se uma mulher com uma bicicleta. Olhemos uma gravura. O ciclista é aquele que domina a capacidade de se equilibrar num veículo de duas rodas, para a inveja dos poucos desafortunados que não o conseguem. Mas, à custa de nunca estar parado: a condição do equilíbrio, não esqueçamos, é o movimento. Ele é a própria imagem do ser sempre em trânsito. O ser que passa. Porém, não é só esse movimento físico que interessa a Iberê, nem a sua metáfora. É o movimento interno entre as coisas e os homens, no caso, entre a mulher nua e a sua máquina, tão simples, a bicicleta, que se encontra no centro da questão. Em muitas de suas pinturas anteriores, os carretéis, com os quais Iberê brincava na infância, pousados na prateleira do ateliê, como modelos de uma nova natureza-morta, são convulsionados num movimento constante ou do estilete ou do pincel, da espátula ou do tubo de tinta. Mas aqui, não.
No ciclista há também outro movimento: um continuum entre a coisa e o ser humano; e de tal forma é realizada a conjunção que não distinguimos com clareza onde começa um e termina o outro. A mesma mancha incerta, escapando de qualquer exatidão geométrica, que poderia ser evocada pelo círculo perfeito das rodas, une o ser vivo e a coisa morta, como se fossem um só. Não chega à monstruosidade do centauro, tal a delicadeza, a debilidade mesmo, da garatuja híbrida de mulher-máquina precária, que se esparrama na mancha da água-forte. Está perto de nós, como ser deformado pelo sua própria existência artística e encontra poesia andando na contra-mão das coisas, cheias de certeza. Dispensa atmosferas e respira o próprio traço que o realiza sobre o papel. Nele não há carne, nem esqueleto, e, no entanto, vemos: está vivo na mancha cinza, que desenha. Tudo que poderia ter de excessivo foi perdido a fim de retirar a precisão de sua máquina e de nela impregnar sua própria natureza humana: a de ser no limite da incerteza.
Essa mulher – a ciclista – que não pode mais ser representada no sentido convencional da mimese, ou da verossimilhança, apropria-se do real pelo caminho atravessado da transfiguração. Ao se alienar no mesmo traço da máquina que a transporta, ela passa humanidade aos objetos com os quais entra em contato. Mas para isso foi necessário se despir do elogio da precisão e das formas exatas, que se constituíram, na sua época, em elogio do casamento da racionalidade com a arte. O preço de impregnar a máquina de humanidade e de com ela se confundir, é se apresentar como ser desossado e desencarnado. E Iberê nos ensina que existe o preço do contrário.
A forma expressiva, que recusa o elogio da clareza e da exatidão – atributos notáveis da racionalidade técnica -, nos ensina muito mais. Iberê nos fala, no traço e na mancha de seu desenho na gravura, da presença de um corpo, que não é só gesto, mas algo como uma trilha que anuncia o caminho do Ser, como se ciclista e bicicleta, homem e coisa, fossem um só, enfim o mundo, nada além, nada aquém, o mundo inteiro, ser e ente. Na arte, essa comunidade, ou melhor, essa unidade comum, entre a coisa e o homem, é originária, mas no mundo não se entrega sem a separação inevitável e hierárquica entre aquele que é e o que existe. Entre o que está lá em si e o outro que lhe dá sentido. Bicicleta ou montanha Santa Vitória, pouco importam máquina ou natureza, o que conta é uma forma que emancipa, do universo amorfo, a relação com uma estrutura que fala. Longe de se conter nas regras das operações entre os diversos elementos formais, distante da perfeição das relações lógicas, mas, na experiência do confronto com o real, que não será o mesmo depois da disputa, essa estrutura perturba aqueles vetores exatos da modernidade, que se quer pura razão. A montanha Santa Vitória resume-se a uma bicicleta, e o olho de Cézanne e seu corpo, a um ciclista. E não sabemos mais, nessa gravura, quem é Cézanne e quem é a montanha. Iberê, o artista, está inteiro naquilo que seria seu objeto. É está a questão expressiva.”
DUARTE, Paulo Sergio. Chega de futuro? Arte e tecnologia diante da questão expressiva. Arte & Ensaios: Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais/Escola de Belas Artes, UFRJ, Rio de Janeiro, ano IX, no. 9, p. 63-65, 2002.