Ciclista, 1989
água-forte, água-tinta (processo do açúcar), ponta-seca e maneira-negra
15 x 19,5 cm
Acervo Fundação Iberê

Tombo G268-14

Foto © Fabio Del Re_VivaFoto

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“Estratégia simétrica Iberê adota em Ciclista (água-forte e água-tinta, 1989), cujas provas de estado mostram o esforço do artista em transferir o movimento horizontal das linhas do desenho inicial para a vibração concentrada do ciclista e da bicicleta. Mas se essas figuras falam do movimento em sua vibração e em seu destino de rodar e passar, também articulam o seu oposto: a imobilidade atávica que as prende à consistência do mundo, como se já tivessem nascido assim, inertes. Os ciclistas, que apareceram na sua obra na década de 1980, quando retornou a Porto Alegre, poderiam ser vistos, portanto, como sucedâneos dos carretéis. Se estes são, como definiu Ronaldo Brito, ‘formas que rolam’, aqueles são ‘seres que passam’, nas palavras de Paulo Sérgio Duarte. Pessoas eternamente em trânsito, condenadas ao ativismo, dada a natureza precária de seu equilíbrio. E, mantendo essa correspondência, se o carretel imóvel fala da sua potência dinâmica, o ciclista infrene só pode falar do paroxismo do próprio movimento: a inércia.
[…] Sequer podemos definir claramente as qualidades pessoais do ciclista (sexo, raça, idade ou condição social). Nenhum drama, tampouco, vem do ambiente em que se encontra – a paisagem rude e austera formada pelos troncos das árvores. A tragédia existe na inquietude da matéria da gravura, que se forma e dissolve, mostrando que o artista está lidando, a um só tempo, com o fim dos tempos e com a origem da humanidade ou, melhor dizendo, com a origem da qualidade do humano – aquilo que nos identifica a todos como parte da humanidade.
Os ciclistas de Iberê, com suas propriedades metafísicas, como destacou Ronaldo Brito, nos levam para esse limite. Sabem que são vãs as tentativas de transformação da realidade. Abrem mão dos sonhos nostálgicos de harmonia. Céticos, desesperados, agarram-se à superfície brutal do mundo, que os conforma e ameaça. Exigem de nós, espectadores, o mesmo compromisso com a vivência do limite, conduzindo-nos ao autorreconhecimento integral com cada uma das figuras, a sentirmos na própria pele a dissolução formal e material, a que devemos resistir. Mas a tragédia de Iberê não exclui o riso, nem mesmo certa versão dilacerada de otimismo. Pois no momento preciso em que encontramos o ciclista em sua combinação de vigor e inércia, em que nos vemos no ponto em que as formas, brutalmente atacadas, resistiram e nasceram, surge uma espécie sublime de alegria, de elevado prazer estético e existencial, como se, junto do ciclista, tivéssemos cumprido nosso destino de recolocar o humano no mundo devastado.”

SIQUEIRA, Vera Beatriz. Cálculo da expressão: Oswaldo Goeldi, Lasar Segall e Iberê Camargo. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2010. p. 27-31.