Signo branco I, 1976
óleo sobre tela
99,5 x 172,3 cm
Acervo Fundação Iberê

Tombo P080

Foto © Fundação Iberê

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“Essa pintura foi constituída, durante longo espaço de tempo, por massas densas de tinta, que se pode comparar a materialidade dos corpos reais.
A obra de Iberê caracterizou-se, durante quase três décadas (dos anos 60 até parte da década de 1980), pelo acúmulo de camadas pictóricas, gerando uma pintura matérica, corpo-tinta. As cores se sobrepunham, se misturavam, na própria superfície da tela, deixando rastros de cada uma, mas gerando outra cor. As raspagens com a espátula criaram durante esse período veladuras opacas: carnais, opostas ao conceito tradicional de veladura (véu de cor transparente, de mínima espessura, fortemente diluída). Se as veladuras tradicionais são realizadas por adição, as opacas nascem da extração e deixam seu rastro, como esfoladuras num corpo. As linhas feitas com o cabo do pincel, atravessando as camadas de tinta e formando imagens, promoviam efeitos similares de ferimentos, desenhos em negativo sobre a cor. Marcas de pelos dos pincéis sobre a superfície da tela recriavam os gestos do pintor com suas armas, como ele próprio os denominou. A pintura Signo branco I evidencia essa matéria-carne.”

CATTANI, Icleia Borsa. Paisagens de dentro: as últimas pinturas de Iberê Camargo. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2009. p. 14.

 

“Nas telas inaugurais do artista, como se sabe, o plano da pintura é mostrado em posição rigorosamente frontal, com a malha de carretéis disposta paralelamente ao observador e como que soldada à superfície do quadro. No princípio da década de 1960, esse plano vai aos poucos basculando, afrouxando suas amarrações tectônicas, e os carretéis, antes engastados numa superfície que coincidia perfeitamente com ele, perdem o prumo, até se verem propulsados a uma profundidade pantanosa e escura. No fim da década e ao longo dos anos 70, o protesto em face do plano se radicaliza: liqüidam-se as referências que ainda pudessem remanescer das coordenadas da visão e desaparece qualquer alusão à gravidade e à posição ereta de um observador.”

SALZSTEIN, Sônia. Ausência dos carretéis. In: ZIELINSKY, Mônica; DUARTE, Paulo Sergio; SALZSTEIN, Sônia. Moderno no limite. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2008. p. 42.

 

“Desde as primeiras paisagens, a pintura de Iberê segue um movimento que começa por uma construção instável e passa por uma desestabilização e uma animação atáxicas. As formas não se aquietam, jamais conseguem permanecer inanimadas. A organização inicial não é um ideal, é apenas possibilidade, pretexto, busca de um nexo, um sentido urgente. […]
Tudo tem a forma do núcleo. O carretel é um deles, o ponto de partida. Ele oferece duas vistas divergentes: uma é o perfil, planar e geométrico; outra é a vista de cima: o olho ciclópico ameaçador, misterioso e irracional. Rompendo-o, gira, e o olho vórtice assombra a ordem, desregrador. Suga para si o peso do pincel. Criatura metamórfica e signo movente que multiplica as formas subterrâneas e agressivas que habitam a pintura e tornam a matéria espessa, resistente, antagônica. […]
A pintura de Iberê não tem nada do informal e tampouco do informe. Ao contrário, ela busca evitar o informe a qualquer custo, mesmo que destruindo a forma através do catártico desconjuntar e juntar as coisas. A natureza se reduziu à matéria e apenas nela pode verificar, a cada momento, o resultado de sua ação e sua vontade. Um movimento extenuante persegue a forma até ela não mais sustentar qualquer figura, até o surgimento compacto do ser – afirmação absoluta do primado da matéria.
De que modo enfrentar energia liberada ao rompimento do núcleo? Apenas através de uma força equivalente, uma contraforça do pincel e da espátula sem parar. Esse esforço, que é toda a pintura, é levado à exasperação. O tempo da ação se torna rápido e lento, urgente e demorado, vigoroso e cansado, atual e morto. Esse movimento incessante não permite ao pintor se deter, obviamente não concebe o retocar, o corrigir. Esse é o transe que caracteriza o embate do fluxo contra o fixo. O drama terminal à obra exige e retarda, perseguindo o momento anticoagulante, suspensão entre vida e morte. Nessa experiência radical da matéria também reside uma condição que define o homem moderno desiludido: a vontade intensa de agir e não encontrar resultado em sua ação.
[…] A pintura nunca é o que parece ser: uma improvisação do momento, manifestação imediata do inconsciente, automatismo psíquico. É o expressionista abstrato mais demorado que existe, não deixa intacto o gesto em seu aparecer único, castiga, massacra, tortura toda aparição espontânea. Com a força do braço, tenta conter a todo custo a desagregação que provoca no espaço, aquela mesma já presente nas primeiras paisagens. Esse ingresso violento no espaço resolutamente moderno mostra um artista não tanto da experiência cumulativa – que ele tinha organizada -, mas de espasmos violentos e catárticos, criador insatisfeito e descrente do que cria.”

VENÂNCIO FILHO, Paulo. Iberê Camargo: diante da pintura. Rio de Janeiro: Fundação Iberê Camargo, 2003. p. 47-58.