Figura I, 1964
óleo sobre tela
93 x 132 cm
Acervo Fundação Iberê
Tombo P127
Foto © Fundação Iberê
“Retornando ao Brasil, voltei à paisagem e à natureza-morta com a preocupação de reencontrar o veio que, como já referi, pressentira nos primeiros quadros. Compreendi que o problema estava em mim, exclusivamente, e não nos outros, isto é, a solução estava dentro e não fora.
Daí por diante a minha pintura passou a ser conscientemente expressão: a energia das formas nas suas mútuas relações tornou-se a preocupação constante das minhas composições. Os carretéis, ponto de partida, da fase atual, a princípio estáticos, dinamizarem-se.
Inspirados no vôo dos pássaros, no movimento ondulatório das pandorgas, nos moirões à beira das estradas, que desfilam durante a corrida vertiginosa de um automóvel, serviram-me de base à dinamização das formas já então despidas de todo o aspecto representativo para se tornarem realidades em si mesmas. Seria difícil precisar o estímulo que me leva a realizar um quadro: revoada de pássaros, velocidade, cor, carretéis, fundos de sangas…
Algumas dessas coisas posso colocar sobre a mesa, como faz o pintor de naturezas-mortas. Mas como poderei colocar sobre essa mesa as formas que o inconsciente põe nas minhas mãos?”
MARTINS, Vera. Iberê Camargo, prêmio de pintura da Bienal. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 set. 1961. (Fala de Iberê Camargo).
“Seja como for, não é possível que as bandeiras da anti-arte ou da anti-forma, e que a emergência da cultura de massa no coração mesmo da alta cultura não surtissem efeitos transformadores no trabalho de Iberê, a começar pela própria atitude indignada, de resistência, que o artista marcaria perante esses acontecimentos. Ainda que aos olhos do pintor eles sinalizassem apenas o triunfo da vulgaridade da indústria cultural sobre a arte, é claro que as violentas estocadas na tela, a tangenciar permanentemente o informe, manifestavam uma posição ativa e influente nesse contexto – não o comportamento reativo de um modernista tardio e provinciano. Se é fato que sua pintura resistiu tenazmente à empiria, a uma miscigenação com materiais ‘sujos’ e heteróclitos, não se pode subestimar o quanto lhe serviu de êmulo um imaginário escatológico, no qual a matéria pictórica não raro seria associada ao excremento e à uma saga que poderia conduzir indiferentemente à transcendência ou à animalidade.”
SALZSTEIN, Sônia (org.). Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 49.
“[…] A série dos Carretéis inicia em 1958: o motivo, que remete duplamente ao tempo (como movimento rotatório e como lembrança infantil), emerge e volta a afundar na matéria pictórica que, justamente por essa capacidade de engolir e devolver, é a própria materialização do tempo. Mas é um tempo estancado, que já não flui naturalmente. O quadro é um charco. A pintura a óleo, que foi um dos produtos mais sofisticados da cultura ocidental, tornou-se matéria inerte, quase excrementícia. É necessário escavar nela para extrair restos, memórias, o que pôde sobrar.
Pintar, então, será ter nostalgia da pintura. É uma nostalgia, porém, que deve ser levada a sério, estudando com afinco os antigos procedimentos, utilizando os melhores recursos. Daí a recusa a misturar o óleo com materiais ‘baixos’ (esmalte, alcatrão, areia) como se usava em muita pintura expressionista ou brutalista da época. Não faria sentido, do ponto de vista de Iberê, simular por contaminação o que já era um dado de fato. A pintura a óleo já continha em si os agentes históricos de sua decomposição. Em relação aos novos meios de produção de imagens, tornara-se opaca, viscosa e lenta. O que era brilho virou sombra. A exploração incansável das cores deu, afinal, o preto. Mas é um preto estriado, translúcido em sua opacidade, contaminado por todas as cores que recobre.
Dito de outra forma: a pintura de Iberê é expressão de uma modernização que chegou tarde demais, e que desmancha ao mesmo tempo em que se constitui. Já nasce como paraíso perdido. […]”
MAMMÍ, Lorenzo. Iberê Camargo: as horas [o tempo como motivo]. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2014. p. 12.
“A partir do início dos anos 60, a figura ocupa todo o espaço da tela. Seria o que, convencionalmente, corresponderia à sua fase mais ‘abstrata’. No entanto, Iberê negava ser abstrato; e intitulou algumas obras dessa época, talvez provocativamente, Espaço com figura, e até mesmo, Ceifadores. Os títulos são significativos: demonstraram que, para o pintor, a figura existia. A figura invade o espaço da tela, torna-se o próprio lugar, o lugar da pintura. O que o pintor cria, com suas formas e cores, são figuras não sobre um fundo, mas sobre um suporte. A figura é o todo, ela é o corpo da pintura, que se relaciona com o corpo do pintor e com o espaço real que a circunda. Isso já é visível nessa Figura: uma forma, entre animal e humana, com todos os seus braços/patas estendidos até praticamente a borda da tela; mais intuída do que efetivamente percebida, ela invade praticamente todo o espaço de representação.
As cores excessivamente escuras da pintura, preto e marrom, potencializam a indefinição. Apenas pequenos espaços mais claros, nas bordas de certas pinceladas, parecem indicar limites. A figura, em sua indefinição, nasce do lugar, cria o lugar, é o lugar. A data indica um momento trágico na história do país. A tela poderia perfeitamente chamar-se ‘Revolta’ ou algo equivalente, pois evoca esse sentimento no espectador. Mas, intitulando-a Figura, o artista aponta também para nossos corpos, presos, naquele momento, numa teia viscosa de escuridão, medo e raiva, e a sensação de não haver luz no fim do túnel. A figura pulsa, treme, resiste. Ela é o lugar da resistência e da dor, da revolta e do desejo de ação. Iberê, reagindo à escuridão política, recorre ao negror cromático, à acromia. Mas mantém acesa a chama da resistência: na parte superior da tela, onde se intui que esteja a cabeça desse ser, brilha um vermelho vindo do fundo das camadas de tinta. Iberê parece referir-se à história que gostava de contar, sobre alguém que, para encontrar o relógio valioso que havia perdido, teve de enfrentar os excrementos depositados em grossa camada num fosso. Dizia ele que era esse o ofício do pintor; encontrar o ouro, raspando os dejetos. Nessa tela, ele parece materializar essa idéia, mostrando, como artista-cidadão, o ouro do inconformismo e da generosidade.”
CATTANI, Icleia Borsa; SALZSTEIN, Sônia (org.). Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 73-74.