Tudo te é falso e inútil III, 1992
óleo sobre tela
200,2 x 235,8 cm
Acervo Fundação Iberê

Tombo P129

Foto © Fundação Iberê

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“Podemos constatar que as paisagens e os corpos que vão se desmaterializando, chegando a formas transparentes e que parecem gerar-se mutuamente, eram uma característica nos anos 90. A série Tudo te é falso e inútil tem basicamente a mesma estrutura: uma figura humana feminina de grandes proporções atravessa verticalmente a tela em seu lado direito. Seu corpo e esquematizado; como em Solidão, os rostos concentram um maior número de linhas e de tons, sendo focos privilegiados dentro do espaço. As pinturas são azuis, quase monocromáticas, embora se possa adivinhar uma cor mais quente abaixo da superfície, que aflora por momentos. Junto dos corpos, encontram-se alguns elementos que diferenciam uma tela da outra: uma bicicleta, talvez uma cadeira, apenas sugerida, e algumas formas não identificáveis. As figuras humanas presentes continuam, por sua vez, com características semelhantes às telas com o tema As idiotas. É como se os próprios corpos gerassem os que os sucederam; ou como se um único e mesmo corpo migrasse de uma tela à outra, provocando mutações na paisagem, criando-a, a cada vez, à sua medida.”

CATTANI, Icleia Borsa. Paisagens de dentro: as últimas pinturas de Iberê Camargo. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2009. p. 24.

 

“[…] Especialmente nas últimas telas, a matéria freqüentemente surgiria lassa, desamparando as personagens; as cores, em sobreposições indecisas quanto a serem quentes ou frias, sujavam-se e aniquilavam-se reciprocamente e o gesto mostrava-se destituído da eloqüência que marcara a produção precedente. Eram, não se pode esquecer, tempos de celebração da ‘volta à pintura’, da qual o artista jamais havia saído, não por opção, mas por aquela necessidade interna, que o levava a testar continuamente a plasticidade da matéria e a resistir à empiria.
O preço de sua perseveração na pintura até aquele final do século XX fora justamente a perda da plasticidade, do movimento e da temporalidade da matéria, cujos signos haviam sido, por excelência, os elementos motrizes que povoaram toda a trajetória do pintor: carretéis, dados, bicicletas. Ora, àquela altura, as obras já não podiam experimentar esses objetos/acontecimentos em sua dimensão fenomenológica, visto que era dessa impossibilidade da experiência que tratava a interminável ‘morte da pintura’ à que o artista se dispusera, e que terminara por conduzi-lo àquele ponto irrevogável. Entretanto, as obras teatralizavam aqueles acontecimentos sem ressaibos de paródia, sem tematizá-los; expunham-nos num cenário minimalista, a narrativa e a retórica ausentes, as personagens não particularizadas por qualquer psicologia individual. Aí estavam, afinal, traços essencialmente anti-heróicos da obra de Iberê, testemunhando, a despeito da imagem romântica que dela se cristalizou, uma inesperada dimensão realista – um realismo que não seria, evidentemente, demonstrativo nem filho das luzes, mas exasperadamente visionário.”

SALZSTEIN, Sônia (org.). Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 56-57.

 

“[…] Nos seus últimos trabalhos ressoa como nunca o bordão da derrota, mas de maneira diferente. Refiro-me à produção do final da década de 1980, até a última obra, chamada Solidão. É talvez o momento mais alto da sua pintura e um dos melhores da pintura brasileira, trabalhos ainda não de todo compreendidos e assimilados. Atrás de uma gravidade perplexa, gravam um travo que nos desconcerta ainda. Parecem ser sempre mais fortes que o nosso olhar. O criador se imiscuiu nas criaturas, figuras colocadas agora em um ponto terminal, sarcasticamente metafísico. Se lembrei Fernando Pessoa, anteriormente, como horizonte poético próximo, esses últimos trabalhos evocariam Samuel Beckett. O passado agora parece rir de si mesmo com um esgar idiotizado, na trágica avaliação de sua inutilidade. O artista que Iberê inventou para si está lá, agora dentro do quadro, olhando para seus temas e motivos – o homem e a pintura – e parecendo perguntar: qual o sentido de tudo isso? E a resposta estava já no título: Tudo te é falso e inútil. A luz em que esses seres estão imersos também é paradoxal. Não sabemos se começa a iluminar a noite ou a ensombrecer o dia […].”

PASTA, Paulo; SALZSTEIN, Sônia (org.). Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 119-120.