Crepúsculo da Boca do Monte, 1991
óleo sobre tela
200 x 283 cm
Acervo Fundação Iberê

Tombo P130

Foto © Fundação Iberê

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“[…] O clima de meus quadros vem da solidão da campanha, do campo, onde fui guri e adolescente. Na velhice, perde-se a nitidez da visão e se aguça a do espírito.
[…] Essa decantação da forma em muitas águas, tanto nas palavras como nas linhas, na pintura, é uma depuração, uma síntese que leva ao que eu chamo uma ‘transfiguração’ situada além da aparência. Importante é encontrar a magia que existe nas coisas, na vida. Do contrário, seria apenas um testemunho visual de um fenômeno ao alcance de qualquer um.
Não há um ideal de uma beleza, mas o ideal de uma verdade pungente e sofrida que é a minha vida, e tua vida, é nossa vida, nesse caminhar no mundo.
Sou impiedoso e crítico com minha obra. Não há espaço para alegria. Acho que toda grande obra tem raízes no sofrimento. A minha nasce da dor. […]”

CAMARGO, Iberê; MASSI, Augusto (org.). Gaveta dos guardados: Iberê Camargo. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 30-31.

 

“[…] Em Crepúsculo da Boca do Monte, constata-se o retorno da linha diluída, com alto grau de fluidez, que constrasta fortemente com o acúmulo matérico presente até então. A mudança foi progressiva e já é sensível em muitos quadros do final dos anos 80. A fluidez da cor cria transparências, com volumes apenas sugeridos. A linha de horizonte volta a dividir o espaço, volta a ser elemento gráfico, e não mais divisória corpórea, densa e alta. A monocromia, embora com fortes contrastes de tons, e as transparências que parecem fazer os corpos transbordar de seus limites, criam uma ‘descarnalização’: o lugar parece atravessar, e quem sabe, mesmo, produzir, de modo fantasmático, a figura.”

CATTANI, Icleia Borsa; SALZSTEIN, Sônia (org.). Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 91.

 

“A principal virtude da crítica, frente a telas tão impressionantes, talvez seja saber calar-se. E só consentir palavras prementes, inevitáveis, que tenham o poder de transmitir a perplexidade duradoura que essas pinturas imprimem em nossa percepção. De fato, não pedem contemplação e sim convívio espiritual. Tudo nelas – desde a escala formidável até a sabedoria trágica de sua visão retrospectiva – exibe uma densidade e uma intensidade existenciais que não se colocam à disposição do olhar. O pensamento visual promove aqui, a contracorrente, a vontade de permanência do singular: resistindo à deliqüescência e à desqualificação generalizadas das aparências, típicas de nosso cotidiano, tais obras destinam-se a ficar.
Mas é um estranho espetáculo, talvez uma espécie fascinante de contra-espetáculo, o que finalmente apresentam. Trazem à luz o fluxo do tempo e sua capacidade aterradora de dispersar e dizimar. E, no entanto, todo o terrível que surge, surge com um brilho, uma atualidade, fruto da determinação de um Eu lírico empenhado nada menos do que em redimir a vacuidade, a própria futilidade da vida.
Inspirado por uma ética da auto-superação, comum aos expressionismos no sentido lato, a poética de Iberê Camargo seria uma declaração enfática em favor da repotencialização constante da vida. O real será movimento, esforço e ânsia de realização, ou será apenas uma vã esperança, ilusão medíocre de coerência e harmonia. A prática da pintura, no contexto da modernidade tardia, consiste no discreto exercício heróico de renovar a dinâmica plástica da vida: atentar, acreditar naquilo que vemos, senti-lo plenamente, eis o que se torna mais e mais difícil no receptivo Império da Imagem. […]
Não há pois como decidir se contemplamos o olhar opaco da idiotia absoluta ou a fisionomia compreensiva, ironicamente implacável, da lucidez integral. Nem há garantias que o dilema seja crucial para a experiência estética dessas obras. Existe, sim, quero crer, um fato inegável: ao evidenciar com semelhante grau de virtuosismo a miséria, a demência do presente, essas telas tratam, na medida de seu alcance, de salvá-lo. E o que viéssemos a especular não passaria provavelmente de uma antecipação ociosa e pretensiosa. Todos os que se disponham a enfrentá-las terão com certeza que encontrar as suas próprias palavras para não conseguir defini-las.”

BRITO, Ronaldo. Iberê Camargo. DBA Artes Gráficas: [São Paulo], 1994. p. 87-93.