Solidão, 1994
óleo sobre tela
200 x 400 cm
Acervo Fundação Iberê
Tombo P165
Foto © Rômulo Fialdini
“Eu apenas reflito o que eu sinto. E talvez eu assim fazendo, esteja refletindo a solidão que existe num mundo superpovoado. O mundo nunca foi tão populoso e as cidades tão populosas, essas grandes metrópoles… Mas nunca houve também tanta solidão a meu ver como agora nessa grandeza toda. Então essa solidão eu acho que é inerente, é o halo, é o que nos acompanha. Eu sinto essa solidão do homem e ele é solitário na sociedade e é solitário no universo. O eu é uma coisa terrível porque aquele eu é indevassável, é incomunicável. A grande tragédia do homem é que ele não encontra comunicação com o outro, com seu próximo.”
MARTINS, Carlos; MARTINS, Marcos André. A gravura de Iberê Camargo – uma retrospectiva. Banco Francês e Brasileiro: Porto Alegre, 1990. n.p. (Fala de Iberê Camargo em entrevista).
“Solidão, o último quadro não terminado, tem as dimensões do sentimento que expressa no título. Ilimitado, indeterminado, infinito talvez. Último e inacabado, derradeiro esboço, visão imprecisa, vislumbre mais do que visão. Solidão, três figuras recém-nascidas do século XXI e já envelhecidas de milênios, recém-nascidas e amortalhadas, três graças caquéticas e espectrais emergem num espaço dissolvente, o líquido amniótico dos últimos dias. Tão próximo das aguadas dos desenhos. Imensidão azul, translúcida aguada para renascer. Solidão, tal como a pintura pré-histórica – a parede da caverna -, se comunica integralmente com o cosmos, em alto e baixo, frente e verso, começo e fim. As figuras se aproximam e se afastam, lançando um último olhar para nunca mais. E uma luminescência fosfórica – lembrança da luz – banha o espaço, sem deixar sombra alguma. Amanhecer ou anoitecer, início ou fim, vida ou morte?”
VENANCIO FILHO, Paulo. Iberê Camargo: diante da pintura. Rio de Janeiro: Fundação Iberê Camargo, 2003. p. 113.
“[…] ‘Iberê nos deixou um enigma’, disse o crítico carioca Ronaldo Brito ao olhar o quadro, que Iberê chamou de Solidão. Talvez aquelas três lúgubres mulheres sejam as Parcas – as deusas da morte que estabelecem a hora fatal. A mulher embuçada deve ser Átropos, que com sua desapiedade tesoura corta os fios de ouro e seda por elas mesmas tecidos para as vidas dos poetas e dos artistas. O título deve aludir à infinidade e irremediável solidão daquele que está morrendo.
A revista Time, ao registrar a morte de Iberê, disse que ele expressava a ‘miséria humana’ de forma ‘impiedosamente honesta’.”
FREITAS, Décio. O quadralhão. Zero Hora, Porto Alegre, 11 set. 1994.
“Nas telas de Iberê dos anos 90, as paisagens parecem ser geradas de dentro. De dentro do próprio pintor, de dentro dos corpos humanos presentes nas telas; como se fossem criadas à sua medida. Essa característica é notável até a sua última tela, Solidão. Essas paisagens são limitadas, na maioria das vezes, a uma linha de horizonte que separa o céu e a terra, o alto e o baixo. É como se os corpos necessitassem dessa sinalização mínima, dessa paisagem indicial, para se sentirem presos a algo. Na verdade, é como se esses corpos excretassem o signo da paisagem para sentir-se no mundo, num mundo. A linha de horizonte plana parece nascer no interior dos corpos. Paisagens que são, simultaneamente, lugares, lugares-corpos que parecem possuir elos frágeis com o mundo que habitamos. Eles questionam nossa materialidade.
[…] A linha de horizonte é um traço tênue, sem nenhum outro elemento que indique um lugar, uma paisagem, um lugar-paisagem. Ela apresenta a mesma densidade do contorno dos corpos e a mesma tonalidade. […]
Fantasmas em um mundo sem densidade, nem peso. Universo espectral, como o que o artista havia explorado antes, com outras características formais. Mas, nesta tela, não se trata mais de crítica subjetiva, e sim de testemunho. Inconcluso, talvez; mesmo assim, definitivo. A Iberê faltou tempo para terminar esta pintura, razão pela qual seu resultado ficará para sempre levantando interrogações.”
CATTANI, Icleia Borsa. Paisagens de dentro: as últimas pinturas de Iberê Camargo. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2009. p. 34-35.
“[…] Nos seus últimos trabalhos ressoa como nunca o bordão da derrota, mas de maneira diferente. Refiro-me à produção do final da década de 1980, até a última obra, chamada Solidão. É talvez o momento mais alto da sua pintura e um dos melhores da pintura brasileira, trabalhos ainda não de todo compreendidos e assimilados. Atrás de uma gravidade perplexa, gravam um travo que nos desconcerta ainda. Parecem ser sempre mais fortes que o nosso olhar. O criador se imiscuiu nas criaturas, figuras colocadas agora em um ponto terminal, sarcasticamente metafísico. Se lembrei Fernando Pessoa, anteriormente, como horizonte poético próximo, esses últimos trabalhos evocariam Samuel Beckett. O passado agora parece rir de si mesmo com um esgar idiotizado, na trágica avaliação de sua inutilidade. O artista que Iberê inventou para si está lá, agora dentro do quadro, olhando para seus temas e motivos – o homem e a pintura – e parecendo perguntar: qual o sentido de tudo isso? […] A luz em que esses seres estão imersos também é paradoxal. Não sabemos se começa a iluminar a noite ou a ensombrecer o dia […].”
PASTA, Paulo; SALZSTEIN, Sônia (org.). Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 119-120.