Fantasmagoria IV, 1987
óleo sobre tela
200 x 236 cm
Acervo Fundação Iberê

Tombo P185

Foto © Fabio Del Re_VivaFoto

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“Minha contestação é feita de renúncia, de não participação, de não conivência, de não alinhamento com o que não considero ético e justo. Sou como aqueles que, desarmados, se deitam no meio da rua para impedir a passagem dos carros da morte. Essa forma de resistência, se praticada por todos, se constituiria em uma força irresistível. O drama, trago-o na alma. A minha pintura, sombria, dramática, suja, corresponde à verdade mais profunda que habita no íntimo de uma burguesia que cobre a miséria do dia a dia com o colorido das orgias e da alienação do povo. Não faço mortalha colorida.”

CAMARGO, Iberê; MASSI, Augusto (org.). Gaveta dos guardados: Iberê Camargo. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 135.

 

“Nessa retomada trágica da figuração, há algo de comum entre Iberê e Giacometti. Em ambos a figura humana vinha como resposta trágica ao sentimento de abandono, de perda de um mundo compartilhável. São seres absurdos, assexuados, aquém de toda distinção humana. […] Abandono, perplexidade, solidão, são características do sujeito moderno em um mundo obcecado pela imediatez das imagens tecnológicas. A obra de Iberê esteve até o fim comprometida com a atualidade da pintura. Atualidade que indica a necessidade da pintura, ou seja, que seu ocaso seria a perda de uma dimensão única do aparecer das coisas. […]
Sua vinculação histórica, por intermédio de um conjunto de operações poéticas, não restringe, mas potencializa sua singularidade como formadora de um modo particular de perceber o mundo.”

OSORIO, Luiz Camillo; SALZSTEIN, Sônia (org.). Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 75-76.

 

“Na série Fantasmagoria, obras de grande porte, o artista cria uma estrutura visual, na qual, as figuras dominam pela verticalidade, acentuada, sobretudo, com a linearidade cromática, sendo a tinta aplicada em estado quase puro, da bisnaga à tela, modelando os corpos esquálidos. A figura, nos anos oitenta, retoma seu lugar na obra de Iberê, como um retorno à própria ordem, onde o gesto febril permanece atuante na construção de suas figuras, de seus personagens.”

BRITES, Blanca. Tempo em constante desafio. In: CARVALHO, Ana Maria Albani de; BRITES, Blanca. Iberê Camargo: persistência do corpo. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2008. p. 18.

 

“A pintura de Iberê sintetiza toda essa ordem de fatores pessoais e culturais. Artisticamente resulta numa trajetória altamente íntegra, isto é, realizada com o mesmo empenho, o que traz como conseqüência uma obra de pouquíssimos desníveis, toda ela de igual qualidade, tanto nas pinturas mais bem-sucedidas como nas demais. Existencialmente, a obra exala um desconforto com certos modos de sentir brasileiros, a inquietude, a intransigência, a solidão pondo Iberê do outro lado da nossa sociabilidade, aquela, em tese, do ‘homem cordial’. Nessa chave não se compreende sua pintura violenta, áspera, anti-sentimental, agressiva. Como Goeldi, Iberê fala do ‘custo’ subterrâneo dessa vivência, da miséria e injustiça que se escondem atrás de tão ameno trato social. Nesse ponto, por mais paradoxal que possa parecer, a violência em Iberê lembra uma frase de Hélio Oiticica: ‘violência é justificada como sentido de revolta, mas nunca como o de opressão’. E a revolta é um dos impulsos fundamentais da obra de Iberê, quem sabe o mais fundamental.”

VENANCIO FILHO, Paulo; SALZSTEIN, Sônia (org.). Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 132.

 

“Não seria correto afirmar que ele [Iberê] estivesse então retornando a técnicas pictóricas exploradas na sequência de seus estágios com Lhote ou de De Chirico. Muito pelo contrário, a figura assume ares grotescos, carnavalescos, como num teatro medieval e cruel. Os recursos expressivos de uma pintura apressada, violenta, despreocupada com a anatomia, despreocupada com a correção da anatomia ou com a semelhança constituem a base de seu novo estilo figurativos. Pensamos então em artistas como De Kooning ou Dubuffet que sempre privilegiaram a expressividade burlesca, atentatória à bela figura legada pela tradição humanista. A ironia faz-se agressiva, e a beleza clássica que reivindicava De Chirico já é somente um mito antigo que o pintor parece desejar massacrar.
Mas seja qual for a sorte do conteúdo simbólico dessa nova maneira de representar a figura humana, por mais expressivas que sejam as deformações, Iberê volta à pintura figurativa e isto é uma ruptura maior. Esse retorno oportuniza, como se pode compreender, a aparição do manequim. Este ser artificial, construído, é O OUTRO absoluto de nosso corpo, que vive e sofre suas misérias. O manequim é pura alteridade, forma vazia, inanimada e, entretanto – ou talvez por isso mesmo –, fascinante.”

LEENHARDT, Jacques. Iberê Camargo: os meandros da memória. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2010. p. 33.

 

“Ticiano, em seu Suplício de Mársias, ‘demonstrava saber aquilo a que teria se reduzido a pintura moderna: a dissecação é o elemento crucial para o sucesso da pintura’. Articular figura e fundo, enfrentando a opacidade do suporte, seria, sempre, fazer ato de violência?
A dissecação, no caso das Ciclistas de Iberê, ou de suas Fantasmagorias, assim como nos corpos das mulheres de Jean Dubuffet e Willem De Kooning, corresponderia então à própria exibição dos processos pictóricos, e de toda a dificuldade moderna com a figura. A consciência da opacidade do suporte, a declaração moderna dos meios pictóricos, restringiriam assim o ‘espaço’ habitado pela figura. Como escreve Gilbert Lascault a propósito das mulheres de Dubuffet e De Kooning, ‘o que está em perigo, aqui, é a figura, tal como é representada, mas igualmente a pintura, tal como ela age e tal como se define’.”

COTRIM, Cecília; SALZSTEIN, Sônia (org.). Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 142-143.