Os impactos da transformação digital na moda

06.maio.20

“Nos últimos 20 anos, a produção de moda cresceu mais de 400 por cento. São mais de 7 bilhões de pessoas para vestir em todo planeta, é verdade, mas as indústrias precisam se tornar limpas e sustentáveis. É inaceitável a gigantesca quantidade de petróleo usada para fazer poliamidas e poliéster. Da mesma forma, o desmatamento desenfreado para plantar monoculturas de algodão. Na pecuária, um boi necessita de 40 mil litros de água para virar bife e couro. Isso não é fashion.” Alexandra Farah, jornalista de moda e fundadora da WeAr Brasil

A fibra sintética – poliéster – mais usada na indústria têxtil em todo o mundo não apenas requer, segundo especialistas, 70 milhões de barris de petróleo todos os anos, como demora mais de 200 anos para se decompor. A viscose, outra fibra artificial, é feita de celulose e exige a derrubada de 70 milhões de árvores todos os anos. Apesar de natural, o algodão também é a uma fibra cujo cultivo é o que mais demanda o uso de substâncias tóxicas em seu cultivo no mundo – 24% de todos os inseticidas e 11% de todo os pesticidas, com óbvios impactos no solo e na água. Uma simples camiseta necessita de mais de 2,7 mil litros de água para ser confeccionada. 

Além do esgotamento de recursos naturais, há o fator social: a maioria das roupas são fabricadas em países asiáticos. Na Indonésia, por exemplo, o rio Citarum é um dos mais poluídos do mundo. Nas margens existem cerca de 400 fábricas de têxteis que, diariamente, depositam lixo na água. Isto gerou uma grave crise de saúde pública, uma vez que as pessoas que vivem no entorno usam a água do rio para cozinhar, lavar roupa e tomar banho. 

A jornalista de moda Alexandra Farah, uma das figuras mais respeitadas no mundo da moda, é colunista da GQ Brasil e fundadora da WeAr Brasil, empresa que desde 2015 vem incentivando o desenvolvimento da moda do futuro. O projeto presta consultoria a empresas interessadas na revolução digital da indústria, unindo um hub de marcas e de startups de moda e de tecnologia para resolver questões nos campos da  produção, do produto e do serviço.

Segundo ela, os próximos anos não serão tão revolucionários para o design. Há uma busca incessante para novas soluções, e a tecnologia tem ajudado a “pensar” na produção de uma roupa ou acessório sem destruir o planeta. A transformação digital também deixou tudo mais transparente. O caminho é comprar menos e com responsabilidade. 

A sua carreira tem uma ligação direta com a tecnologia desde sempre, certo? Como isso começou? 

Alexandra Farah – Poxa, não sei dizer ao certo. Sempre foi um caminho natural. Acho que desde o começo eu me interessei por tecnologia, por inovação, pelo novo. A tecnologia é fascinante porque antecipa uma mudança, mostra o mundo que está por vir, está presente em todos os discursos. Fui me interessando pela moda mais por influência do cinema, que era uma indústria criada a partir do avanço da tecnologia. Antigamente os cinemas eram vitrines para a moda, existia um Cine Shopping, depois a indústria da moda foi se especializando e criando outros meios de comunicação. 

Atualmente, seu trabalho é muito pautado por questões de meio ambiente. Você tem um discurso super ligado à sustentabilidade.

Alexandra – Não dá para falar sobre moda, tecnologia, política, economia, comportamento, ou seja lá o que for, e não pensar em sustentabilidade. O planeta está acabando e, se não pensarmos além, em buscar soluções, nada vai mudar.  

Qual o impacto entre a fusão desses mundos de tecnologia e a sustentabilidade?

Alexandra – Acredito que já estamos caminhando para evolução. As pessoas estão percebendo as mudanças conforme os assuntos são abordados e destacados, algo ligado à uma cadeia de valor. Existem discursos sobre a ideia transhumana que são super interessantes, assim como a liberdade de fusão entre culturas e de respeito sobre diferenças. 

Mas a tecnologia pode ser um facilitador ou um limitador.

Alexandra – A tecnologia está formando uma legião de inúteis, e esse é o lado ruim dessa esfera. Infelizmente, algumas pessoas se fragilizam ainda mais em resposta a não capacidade de acompanhar as mudanças. E isso também afeta o todo, mas não deixa de ser um caminho natural assim como em toda a evolução.

Você ainda acredita na revista de moda como um veículo relevante?

Alexandra –  Não, é muito hardware. Depois da entrada do mundo do software, ninguém mais se interessa em consumir esse tipo de conteúdo e de produto. Os anos 90 transformaram a indústria em um setor crítico. Aos poucos isso foi tomando força e hoje em dia está um caos. Ninguém precisa desse tipo de consumo desenfreado. Roupa tem que durar, não pode ser descartada e virar lixo a cada estação. O digital está aí pra ajudar. 

Em casos mais específicos, será que essa plataforma ainda não é uma necessidade? 

Alexandra – Acho que não. Mas isso talvez seja relativo, sabe? A tecnologia não vai substituir esses veículos antigos ao ponto de exterminar, de acabar com tudo. As coisas vão continuar existindo, nada vai mudar. A diferença é que para continuar existindo, serão necessários novos motivos, novas formas de comunicar e de fazer.

A origem do design tem a ver com a ideia de cumprir um papel de atender uma utilidade e, a partir daí, pensar na solução por meio da inovação. De nada adianta ter uma boa ideia e não ter uma boa capacidade de execução. Isso tem alguma ligação direta com a ideia de sustentabilidade?

Alexandra – Noto que a indústria não se preocupa com embalagens, por exemplo. Pensam demais no produto e pouco na embalagem, que, além de influenciar na decisão de consumo, é o que fica para o mundo, o que gera lixo. Embalagens me interessam. Pensar em embalagens biodegradáveis ou que tenham uma solução menos poluente, de mais fácil reaproveitamento. 

Como você percebe a relação dos jovens e da geração millenial com as redes sociais? 

Alexandra – É um fenômeno. Acho sensacional as possibilidades, os recursos, as ideias. É muito bacana essa interação que surge a partir do jovem e essa facilidade em interagir com a tecnologia, em ter a intenção de fazer bom uso dessa ferramenta. 

Por fim, a arte tem um papel fundamental nisso tudo?

Alexandra – A arte tem uma liberdade de interpretação meio filosófica que, às vezes, é meio cerebral demais, meio complexa, mas definidora. Já existem vários exemplos de aplicação da tecnologia na arte, já é uma realidade. Gosto de observar.